sábado, 1 de maio de 2021

Carlos Alberto Sardenberg - Recados de Biden

- O Globo

 ‘Precisamos demonstrar que a democracia ainda funciona’ — essa foi a frase mais importante do discurso dos 100 dias de Joe Biden. Parece óbvio que um líder americano diga isso, mas, nos tempos de hoje, a frase ganha diversos sentidos.

Dirigida ao presidente da China, Xi Jinping, significa o seguinte: o sistema americano é superior nos quesitos econômicos e políticos, embora precise de algumas reformas.

O chefão chinês sustenta que o modelo deles é mais eficiente no desenvolvimento econômico e na administração de crises. Não apenas porque seus gestores seriam mais competentes, mas porque não precisam se preocupar nem com as urnas livres e votações no Legislativo, nem com eventuais restrições do Judiciário.

Ou seja, a democracia no “modelo chinês”, como chamam a ditadura por lá, funciona melhor que o modelo americano, confuso e lento. Mas e as liberdades?

Ora, tem alguém reclamando? — respondem os chineses.

Eles não admitem, mas sabemos que tem — a começar pelos chineses de Hong Kong, que os ingleses entregaram como democracia capitalista liberal, e o governo chinês está transformando numa ditadura com capitalismo controlado pelo Partido Comunista.

Dentro da China, é difícil saber. Não tem imprensa livre, nem outro partido.

E daí? — dizem. O importante é que o país cresce, saiu da pandemia rápida e eficientemente e todo ano tira milhões da pobreza.

Vista assim, a questão proposta por Biden é a seguinte: a democracia e o capitalismo podem funcionar melhor, gerando e distribuindo riqueza num ambiente de liberdades.

Dirão: mas Biden não foi para a esquerda?

No critério americano, sim, foi para a esquerda — que está longe de indicar um caminho para o socialismo ou mesmo para um Estado de bem-estar social como o da França.

No caso de Biden, significa aumentar a atividade do governo em alguns setores, especialmente infraestrutura e geradores de emprego, e tomar dinheiro dos mais ricos (via impostos) para financiar programas de saúde, renda e educação para as camadas mais pobres.

O recado agora é interno, para todo o público americano, rico ou pobre. Está dizendo o seguinte: não é possível que o país mais rico do mundo abrigue tantas famílias com renda abaixo da média; não é possível que o país mais rico do mundo não consiga oferecer um bom sistema de saúde e de escolas para os mais pobres.

Pesquisas recentes mostram que a classe média concorda com isso. Muitos ricos também. E mais alguns super-ricos, como Bill Gates e Warren Buffet.

Olhando no longo prazo, Biden está movendo o pêndulo. Roosevelt, seu ídolo, aumentou impostos e acentuou a atuação do Estado, como os trabalhistas faziam na Inglaterra.

Com o tempo, o Estado e os impostos começam a pesar. Vêm então Reagan e Thatcher para dizer que o Estado não é a solução, é o problema.

Caem os impostos, eliminam-se regulações à atividade econômica, incluindo as relações trabalhistas. Os países prosperaram.

Aí vem Biden e diz: mas muita gente ficou para trás. O Estado pode resgatá-las, com um governo democrático e mantendo a força geradora do capitalismo.

Muita gente já está dizendo por aqui: estão vendo? Isso de ajuste fiscal é bobagem, o Estado tem mesmo é que gastar. A dívida americana, em proporção do PIB, é maior que a nossa. Logo, qual é o problema?

Vários. O governo americano se financia a juro zero. O brasileiro, se quiser colocar título de dez anos, paga 6% reais. A dívida americana é em dólar, moeda aceita no mundo. Os impostos nos EUA são menores que no Brasil e na Europa, havendo espaço para aumentar.

E, finalmente, mais importante: o Estado brasileiro já gasta demais — mais de 40% do PIB — e não se pode dizer que seja um modelo de eficiência.

Nosso problema é outro: é que, quando o pêndulo vai para a direita liberal, caímos na dupla Bolsonaro/Guedes.

Aí fica difícil.

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