CPI
deve analisar atos de Pazuello, mas sem fingir que ninguém emitia as ordens
“Um manda, outro obedece”. Eduardo
Pazuello, o general que logo sentará na cadeira de testemunhas da CPI da Covid,
carrega um álibi no bolso, mas pensará duas vezes antes de invocá-lo. A alegação
permitiria à CPI saltar as etapas intermediárias, girando seus holofotes
diretamente para a suposta fonte das ordens, que é Bolsonaro. Além disso, como
revela a história argentina, não seria capaz de livrá-lo da responsabilidade
por seus próprios atos.
Sob pressão militar, Raúl Alfonsín, o primeiro presidente da redemocratização argentina, anunciou em março de 1987 a edição de uma lei destinada a interromper inúmeros processos por crimes contra a humanidade. A Lei de Obediência Devida foi antecipada pela sublevação dos “carapintadas”, comandada por um tenente-coronel condecorado na Guerra das Malvinas, na Escola de Infantaria do Campo de Mayo, durante a Semana Santa. Promulgada em junho de 1987, tornou inimputáveis cerca de 500 oficiais indiciados por torturas, “desaparecimentos” e assassinatos durante a ditadura militar.
A
lei erguia-se sobre o reconhecimento de que as Forças Armadas operam com base
na regra da “obediência devida” —ou seja, os subordinados na cadeia de comando
cumprem “atos de serviço”. Contudo, mesmo cedendo à chantagem dos quartéis para
estabilizar uma jovem democracia acuada, o presidente eleito introduziu uma
cláusula limitante: o benefício da impunidade só seria concedido a oficiais com
patentes inferiores a coronel. Pazuello teria que responder por suas ações e
omissões até na Argentina
abalada pelos motins militares.
O
conceito de obediência devida sustentou a defesa do nazista Adolf Eichmann no
célebre julgamento em Jerusalém, em 1961. Seu advogado, Robert Servatius,
declarou que o coronel da SS responsável pela deportação dos judeus aos campos
de extermínio era “culpado diante de Deus, não diante da lei”. Na Argentina,
a Lei de Obediência Devida foi derrogada pelo Congresso em 1998 e declarada
inconstitucional pela Corte Suprema em 2005. Crimes contra a
humanidade não são passíveis de anistia, decidiram os juízes.
Pazuello
não cometeu crimes contra a humanidade, mas crimes potenciais contra a saúde
pública que se estendem da postergação
da compra de vacinas à divulgação de falsos tratamentos
milagrosos contra a Covid-19, passando pela distribuição de cloroquina a
hospitais de Manaus carentes de oxigênio. Nem assim, porém, o álibi dos “atos
de serviço” pode ser admitido na CPI.
O
general obediente permaneceu na ativa quando assumiu o cargo de ministro da
Saúde, borrando um pouco mais a fronteira democrática que separa as Forças
Armadas do governo. Sua deliberação pessoal, contudo, em nada altera o fato
institucional de que ministros são auxiliares políticos do presidente, não
subordinados numa hierarquia militar. Diante dos senadores da CPI, deporá um
político fantasiado em uniforme militar, não um oficial sujeito à cadeia de
comando castrense.
Eichmann
e os oficiais argentinos estavam submetidos a ordens superiores. Entretanto,
não agiam automaticamente, à moda de robôs: cotejavam, numa balança invisível,
o peso das hipotéticas punições por desobediência contra os imperativos das
suas consciências. Como explicou Kant, eles continuavam a dispor de autonomia e
decidiram cumprir ordens abomináveis. Seus crimes resultaram de obediência
consentida, não de obediência devida.
Pazuello,
como eles, mas encarando consequências muito menores, poderia ter dito “não”.
Alfonsín concedeu bastante, até um certo limite. No Processo das Juntas, em 1985, os chefes militares que emitiram as ordens da “guerra suja” foram sentenciados e encarcerados. A CPI tem o dever de analisar as responsabilidades pessoais do general que obedecia, mas não tem o direito de usá-lo como bode expiatório, fingindo que ninguém emitia as ordens desastrosas.
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