O
Brasil ganhará muito quando mentes brilhantes, independentemente de condição
social e cor da pele, estiverem na universidade
A
famosa frase do antropólogo Darcy Ribeiro, “A crise da educação no Brasil não é
uma crise; é um projeto”, foi a primeira coisa que me veio à cabeça ao escutar
o ministro da Economia, Paulo Guedes, criticar o Fundo de Financiamento
Estudantil (Fies) nesta semana. Ele se referiu ao programa governamental como
“um desastre” que deu “bolsa para todo mundo”.
Sem
entrar no mérito da efetividade do programa, que pode até ser discutida, Guedes
escolheu usar o filho do porteiro sendo aceito em uma universidade privada como
exemplo de “bolsa para todo mundo”.
Mais do que um exemplo, a escolha foi perfeita para ilustrar a forma preconceituosa que boa parte da elite brasileira olha para os programas de expansão educacional como o Fies ou Prouni. Esse elitismo em relação a quem deve ser educado ou não existe desde o século XIX.
Enquanto
a Argentina tornou a educação básica mandatória e universal em 1884, o Brasil
só implementou a gratuidade e a obrigatoriedade do ensino primário na
constituição de 1934. E somente em 1969 o ensino dos 7 aos 14 anos passou a ser
obrigatório e gratuito.
Esse
fosso educacional, bem documentado pelos historiadores econômicos Elisa
Mariscal e Ken Sokoloff e, mais recentemente, pelo Renato Colistete, gerou uma
grande defasagem do processo de desenvolvimento econômico brasileiro em relação
a outros países da região, além de uma grande desigualdade regional dentro do
Brasil.
Mas
se a educação aumenta a produtividade dos trabalhadores, gera maior inovação e
crescimento econômico, como mostram muitos trabalhos acadêmicos, por que a
elite brasileira não investiu mais em educação?
Há
diversas teorias para explicar esse fenômeno. Uma primeira explicação está
relacionada ao fato de que elites agrícolas não se beneficiam do aumento da
produtividade dos trabalhadores rurais, mas historicamente pagavam o custo das
escolas via taxação.
Dessa
forma, em locais onde a elite rural prevaleceu sobre a elite industrial, a
educação teve investimentos menores. Uma segunda explicação está relacionada ao
processo político e à distribuição de poder. Num contexto onde somente
indivíduos alfabetizados podiam votar, mais gente escolarizada dissiparia o
poder político das oligarquias.
Num
trabalho recente com Pedro Américo, nós analisamos o caso dos investimentos
educacionais em São Paulo no começo do século XX e mostramos que, em municípios
onde a elite agrícola representava uma maior proporção de eleitores, houve
menos investimentos em educação.
Além
disso, esse fosso educacional em 1920 afetou a industrialização e a
transformação estrutural dos municípios durante as décadas seguintes.
Além
de afetar o processo de modernização e crescimento econômico, a falta de
educação universal transformou o Brasil em um dos países mais desiguais do
mundo. Essa desigualdade foi reforçada ao longo do tempo pela escolha de saída
da classe média das escolas públicas em direção às escolas privadas.
Sem
um mecanismo de pressão por melhores escolas, sustentado em outros países pela
classe média, o incentivo político para melhorar a qualidade da educação esteve
ausente do debate por muitas décadas.
A
partir dos anos 1990, o Brasil entrou em uma trajetória ascendente ao aumentar
a escolarização da população e sua qualidade. Apesar de testes internacionais
ainda mostrarem fossos significativos, houve grandes avanços de aprendizagem,
medidos tanto por provas nacionais como internacionais.
O
esforço de aumento da escolarização e diversificação de oportunidades culminou com
as políticas Prouni e Fies, que elevaram de forma significativa a proporção de
estudantes pobres, pretos e pardos nas universidades.
Devemos
sempre discutir se essas políticas foram custo-efetivas, se foram bem
implementadas e se há outras formas de aumentar a igualdade de oportunidades. O
que não podemos fazer é associar a posição de alguém na sociedade, seja filho
de porteiro ou não, ao direito de estar na universidade.
O Brasil ganhará muito quando cada mente brilhante, independentemente de sua condição socioeconômica e cor da pele, estiver nas universidades adquirindo conhecimento. Mas para isso precisamos acabar com o preconceito que persiste desde o século XIX.
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