Por Monica Gugliano —Valor Econômico/ Eu & Fim de Semana
O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe de Santa Cruz Oliveira Scaletsky, viu um fantasma que julgava exorcizado voltar a assombrar. “Nenhum de nós que passou pelos tempos da redemocratização poderia ter ideia do risco que esse vírus incubado do autoritarismo deixou na sociedade brasileira”, diz o advogado de 49 anos.
Entre
muitas outras sinalizações de retrocessos e de que “esse vírus” voltou a
circular, aponta Santa Cruz, está a “reaparição” no governo de Jair Bolsonaro
da Lei de Segurança Nacional (LSN), promulgada em 1983. A lei tem sido usada
para justificar inquéritos que investigam manifestações e qualquer comentário
considerado crítico ao chefe do Executivo e prevê penas de até quatro anos.
O
youtuber Felipe Neto e o político Guilherme Boulos (PSOL) foram intimados a
depor com base na lei. “Faz parte da política de intimidação do governo, que
recorre a esse entulho autoritário para proteger aqueles que tentam derrubar o
estado democrático de direito”, afirma o advogado, lembrando que o texto já
começou a ser modificado na Câmara dos Deputados, incluindo crimes como o do
uso de fake news. “Todos os presidentes da República pós-democratização foram
acossados por críticas. Por que Bolsonaro não pode ser?”
Passa do meio-dia e a sala de Santa Cruz reluz com a claridade do Sol a pino do lado de fora da casa, onde ele vive com a mulher, a advogada tributarista Daniela Ribeiro de Gusmão, e os quatro filhos: Lucas, 20; Beatriz, 18; Maria Eduarda, 15; e João Felipe, 11. Ele explica que é um condomínio tranquilo, rodeado de verde, na Barra da Tijuca. Está sentado à frente do quadro do artista plástico goiano Marcelo Solá, uma explosão de cores que parece amenizar a frieza destas conversas em frente da tela do computador.
Elas
estão incorporadas à rotina de Santa Cruz desde que o isolamento passou a ser,
junto com o uso de máscaras, álcool em gel e outros cuidados, a forma de
prevenir o contágio do coronavírus. Diz ele que, mantendo o isolamento, não
passa dia sem que várias reuniões, conversas e entrevistas, como este “À Mesa
com o Valor” pelo Zoom, estejam marcadas em sua agenda. Suas poucas saídas,
relata, são até a sede da OAB, próxima de sua casa, também na Barra da Tijuca.
Há
muito tempo que o Judiciário não tinha esse protagonismo na vida pública do
país. “Acabou tendo esse papel preponderante pelo enfraquecimento do
Legislativo e do Executivo”, pondera. Segundo ele, esse cenário está mudando,
inclusive porque há muitas críticas entre os próprios juízes e advogados à
exposição que esse quadro tem permitido, porque o Legislativo busca retomar seu
protagonismo.
“Acho
que não podemos negar o acesso ao Judiciário, quando há tanta
disfuncionalidade”, diz, lembrando que foi a OAB a responsável pela ação que
permitiu a Estados e municípios decidirem suas próprias ações no combate à
covid-19. “O que teria sido do Brasil, sem isso? Porque Bolsonaro abraçou a
morte, literalmente.”
Outro
tema que expôs o Judiciário, assinala ele, foi a decisão do Supremo Tribunal
Federal (STF) de promover um novo julgamento dos casos que envolviam o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo Santa Cruz, o julgamento foi
um divisor de águas, e ele lembra também que em muitas ocasiões se opôs à forma
como os integrantes da Operação Lava-Jato procederam. “O mais importante nessa
questão é que não joguemos a criança com a água da banheira.”
“Jogar
a criança junto com a água da banheira”, explica ele, seria não preservar o
legado de combate à corrupção que a Lava-Jato trouxe à sociedade brasileira.
Santa
Cruz diz que não lhe cabe discutir o caso do ex-presidente Lula. O que lhe
cabe, afirma, é mostrar que o processo necessita ter os devidos cuidados com a
constitucionalidade, com o contraditório, garantir o direito de defesa.
O
almoço pedido por Santa Cruz é mais do que frugal. Ele escolhe uma salada
caesar, acompanhada por uma Coca Zero, pedida no Gula Gula, um restaurante com
mais de 36 anos, considerado quase uma “instituição” no Rio de Janeiro.
Na
foto do cardápio, a salada parece um prato de alface, com algumas lascas de
queijo parmesão por cima. Mas o advogado explica que o prato faz parte da dieta
que começou com a pandemia e conta que perdeu 30 quilos nos últimos meses
passando fome em casa e fazendo exercícios físicos. “A noite é uma sopa - e
só”, diz, contente com o emagrecimento, mas também com uma ponta de tristeza
por não poder comer nada do que gosta.
Santa
Cruz diz que a OAB tem tido muito trabalho desde a posse de Bolsonaro. Em sua
opinião, a pandemia atingiu o Brasil em um dos piores momentos no que diz
respeito a representação. “O presidente boicotou a máscara, a vacina, fez pouco
caso de uma doença que está matando mais de 2 mil cidadãos por dia. É o governo
da ignorância”, critica. “Este governo caminha para a reta final, com uma conta
trágica de mortos e sem nada para apresentar, além de peculiaridades como a
ministra da Mulher ser machista; o representante dos negros, racista; o do Meio
Ambiente, um ecocida militante; e o secretário da Cultura, analfabeto”. Procurados,
o Palácio do Planalto, a ministra da Mulher, Damares Alves, o ministro do Meio
Ambiente, Ricardo Salles, o secretário de Cultura, Mario Frias, e o presidente
da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, não se pronunciaram.
Em sua opinião, o Brasil vive um momento muito delicado e de muita instabilidade. “É importante que as Forças Armadas reafirmem permanentemente o papel de instituições de Estado, que elas não pertencem a Jair Bolsonaro”, diz. Ele também critica os decretos que ampliam as licenças para ter armas e a política para armar a população.
Embora
esteja acostumado com os encontros via tela de computador, Santa Cruz aparenta
estar um pouco sem graça em falar e comer ao mesmo tempo. É preciso explicar
que, como a comida faz parte da entrevista, ele não precisa deixar o prato de
lado, ainda que no caso dele não se corra o risco de as folhas de alface
esfriarem. “Não tem problema. Muitas vezes preciso postergar o almoço.”
Felipe
Santa Cruz era líder estudantil no governo de Fernando Collor (1990-1992) -
hoje senador pelo Pros-AL - quando milhares de jovens, inclusive ele, saíram às
ruas, com os rostos pintados de verde e amarelo - os caras-pintadas - pedindo a
destituição do presidente da República. Primeiro chefe da nação escolhido pelo
voto direto após a ditadura militar, Collor foi acusado de corrupção e perdeu o
mandato no julgamento da Câmara e do Senado, que votou a favor do pedido de
impeachment assinado pelo então presidente da OAB Marcello Lavenere e pelo
presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Barbosa Lima Sobrinho.
A
participação da OAB em episódios da história recente, como o impeachment de
Collor, segundo o advogado, fomenta a ideia de que ali se faz política
partidária. “A OAB não é politizada, como Bolsonaro quer fazer crer. É um
instrumento de política institucional. Há pessoas aqui de esquerda, de direita,
de centro, de todos os lados. Há eleitores bolsonaristas e de oposição”,
afirma.
Formado
em direito na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio, ele foi por duas
vezes consecutivas presidente da seção fluminense da OAB (2013-2015,
2016-2018). Em 31 de janeiro de 2019, foi eleito presidente nacional da OAB.
“Era o começo do governo Bolsonaro, e acho que ele sabia que sou um democrata
radical. Jornalista, artista e advogado que não são democratas radicais não compreenderam
a faculdade. Porque estas são profissões que vivem da liberdade”, diz.
Segundo
Santa Cruz, o presidente nunca compreendeu - entre muitas outras coisas - o
sentido do sigilo entre advogado e cliente. Bolsonaro passou a exigir que lhe
fosse revelado quem havia defendido Adélio Bispo, o autor das facadas
desferidas contra ele ainda na campanha eleitoral, durante um ato em Juiz de
Fora, em setembro de 2018.
Mesmo
depois de muitas investigações, inclusive da Polícia Federal, Bolsonaro sempre
deu e dá a entender que o atentado teve motivação política e que Adélio foi
usado para tirar-lhe a vida, evitando que se tornasse presidente. “Ele ficou
inconformado com a defesa das prerrogativas do acusado”, diz Santa Cruz.
Ainda
deputado, Bolsonaro disse mais de uma vez que o pai de Santa Cruz, Fernando
Santa Cruz, desaparecera porque havia caído bêbado na rua. Antes mesmo da posse
na presidência, relata Santa Cruz, o presidente, que incluiu a entidade no
amplo rol de comunistas que boicotavam seu trabalho, já havia atiçado suas
redes sociais, que passaram a atacá-lo sem piedade. Mas o pior momento desse
embate ainda estava por vir.
Era
julho de 2019, quando Bolsonaro, em uma das entrevistas que dava na grade do
Palácio da Alvorada, afirmou que “um dia” contaria ao presidente da OAB como o
pai dele desaparecera durante a ditadura. Ainda segundo Bolsonaro, certamente
Santa Cruz não iria querer saber “a verdade”.
Segundo
a Comissão Nacional da Verdade, Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira,
estudante de direito, servidor público e militante da Ação Popular Marxista
Leninista, foi preso no dia 23 de fevereiro de 1974, morto por agentes do
Estado, e seu corpo nunca foi encontrado. “Quando Bolsonaro disse aquilo,
fiquei em choque. Minha mãe, meus tios, todos ficaram em estado de choque. Foi
um segundo assassinato”, descreve, com lágrimas correndo pelo rosto.
Bolsonaro,
no entanto, disse na entrevista - e nunca mostrou alguma prova - ter
informações de que o militante não fora sequestrado e assassinado por agentes
da ditadura. Mas por seus próprios companheiros. “Não é minha versão. É a que a
minha vivência me fez chegar às conclusões naquele momento. O pai dele (Felipe
Santa Cruz) integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da
guerrilha lá de Pernambuco, e veio a desaparecer no Rio de Janeiro”, insinuou o
presidente.
“Foi
de uma perversidade que eu jamais pensei encontrar. Meu pai foi um herói da
história brasileira. Não era um clandestino, era um estudante, tinha emprego,
endereço. Mas Bolsonaro fez com que eu, de repente, me visse sozinho, com a
ajuda da imprensa e outros tentando defender uma pessoa que está morta há 40
anos.”
O
desaparecimento de Fernando, naquele Carnaval de 1974, marcou para sempre a
família Santa Cruz. Felipe tinha apenas dois anos e vivia em São Paulo quando o
pai foi sequestrado no Rio de Janeiro com o também militante e amigo de
infância Eduardo Collier Filho. O corpo de Eduardo também nunca foi encontrado,
e as famílias só presumiam que os dois rapazes haviam sido capturados.
A
mãe do estudante, a pernambucana Elzita Santa Cruz, morreu em junho de 2019 em
Olinda (PE), aos 105 anos, sem conseguir resposta para a angústia e a dor da
perda. Durante 45 anos, ela buscou qualquer indício ou pista do paradeiro que
fora dado ao corpo de seu filho. Percorreu gabinetes, quartéis, recorreu a
autoridades e até presidentes brasileiros, explicando que só queria o direito
de enterrar os restos do filho e já não lhe interessava saber quem o havia
executado.
Tal
qual a estilista Zuzu Angel, cujo filho, Stuart, também desapareceu na
ditadura, Elzita - como dizem os versos de Chico Buarque na canção “Angélica”,
escrita em homenagem a Zuzu - “só queria embalar seu filho, que mora na
escuridão do mar”.
A
mãe de Santa Cruz, Ana Lúcia, se casou novamente e se mudou com o filho para
Porto Alegre, onde moravam os pais do marido. Entre 1977 e 1987, a família se
instalou no Bom Fim, bairro tradicional entre as famílias judaicas. Ele conta
que cresceu sem a mais vaga lembrança do pai. “Meu pai, para mim, é uma
história contada pelos outros”, descreve.
O
padrasto, Eduardo Scaletsky, militava na Convergência Socialista. Era
professor, mas passava muito tempo em porta de fábricas. “Moramos em 17
lugares, no subúrbio de São Paulo, em Minas Gerais”, recorda Santa Cruz,
acrescentando que sua vida só passou a ter alguma normalidade no fim dos anos
1970, quando seus pais terminaram a faculdade.
Ainda
assim, lembra de ter tido um susto muito grande quando sua mãe, que liderava
uma das primeiras e grandes greves nacionais dos bancários, foi presa pela
Polícia Federal. “Entrei em pânico, mas aí os tempos já eram outros. Ela teve
direito a advogados, sua prisão foi notícia.”
Muitos
anos de terapia depois de passadas sua infância e adolescência, Santa Cruz diz
que foi tão marcado por esses episódios que uma das razões de rejeitar até
agora os convites para fazer carreira política são os filhos. Ele chegou a se
candidatar a vereador do Rio em 2004 pelo PT, mas não tentou novamente depois
daquele primeiro fracasso. Seu nome agora tem sido cogitado para uma possível
candidatura a governador do Rio em 2022.
“Posso
até pensar e, em algum momento, até aceitar. Mas a vida inteira quis dar a eles
uma vida de propaganda de margarina. É aquela coisa de pai, mãe, estabilidade e
não achar que a qualquer momento pode acontecer uma hecatombe”, explica,
acrescentando que os filhos têm medo de que ele sofra um atentado, da violência
nas redes sociais.
Santa
Cruz recorda que foi uma criança com muito medo. Mas não carregava esse
sentimento na vida adulta. O sentimento, conta ele, voltou desde que apareceram
os primeiros infectados com o coronavírus e a “perversidade” de Bolsonaro se
fez mais presente. Hoje, afirma o advogado, parte dos brasileiros vive com
muito medo do presente e do futuro.
“Vivemos cercados pela morte”, lamenta. “Estive pensando sobre as famílias que não conseguem cumprir o luto quando seus familiares e amigos morrem vítimas da covid. É uma situação semelhante àquela da ditadura. Semelhante à morte do meu pai.”
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