Erros na pandemia decorrem de vício de origem: a incompreensão do papel do líder numa democracia moderna.
No dia seguinte à instalação da CPI da Covid, milícias digitais atacaram senadores de oposição. A artilharia envolveu desde a disseminação de fake news até ameaças veladas aos parlamentares, com frases como “Você gosta da sua família?” O assunto foi tema de reportagem do Estadão e mereceu manchete na edição impressa da quinta-feira 29. A operação, segundo suspeitam os senadores, foi deflagrada por três assessores da Presidência da República. Os parlamentares enxergaram no processo a digital do “gabinete do ódio”, grupo influenciado pelo vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente.
Pode-se gostar ou não dos senadores, mas eles não estão no Parlamento por concurso público. Somados, constituem um espelho do povo brasileiro, pois foram escolhidos em eleição livre. Nas democracias, é normal que os cidadãos elejam os governantes e os oposicionistas que irão fiscalizá-los. É igualmente normal que adversários políticos subam o tom de vez em quando. Não é normal – nem democrático – que se tratem como inimigos, passíveis de extermínio por milícias digitais.
“As
elites eleitas, de situação ou oposição, são moderadoras das preferências
populares”, diz o cientista político Jorge Fernandes, da Universidade de
Lisboa, que desenvolve o assunto no minipodcast da semana. Tal moderação se dá
entre entes que dialogam. Nas democracias modernas, os líderes são, antes de
tudo, negociadores. Sabem que, mesmo escolhidos pela maioria, beneficiam-se da
conversa constante com as vozes minoritárias, à direita e à esquerda, de uma
sociedade plural.
Uma
CPI é um instrumento legítimo numa democracia. A atual pode prestar um serviço
inestimável se trouxer à tona informações concretas e úteis. Um editorial
publicado no Estadão na segunda-feira 26 deu uma contribuição importante nesse
sentido. O texto junta três estudos científicos sobre a gestão da pandemia no
Brasil. Deles se depreendem pelo menos sete erros crassos no combate à
covid-19.
Um:
faltou uma coordenação nacional efetiva para lidar com a pandemia, algo fundamental
num país tão desigual. Dois: a baixa testagem comprometeu o planejamento. Três:
houve atraso no fechamento de fronteiras. Quatro: o excesso de serviços
designados como “essenciais” prejudicou políticas de isolamento. Cinco: houve
intervenção indevida em protocolos de tratamento – leia-se cloroquina. Seis:
foram demitidos quadros técnicos importantes do Ministério da Saúde. E sete: os
fundos de emergência não foram utilizados na íntegra. Eles poderiam ser
empregados, por exemplo, na compra de vacinas.
Todos
esses erros decorrem, em maior ou menor grau, do já citado vício de origem do
governo federal: a incompreensão do papel do líder numa democracia moderna.
Faltou negociar com os governadores políticas conjuntas. Faltou envolver
instâncias internacionais – como a Organização Mundial da Saúde – num
intercâmbio iluminador. Faltou ouvir uma parte importante da sociedade civil –
a comunidade científica – sobre boas práticas no combate a pandemias.
O
Brasil é referência internacional em campanhas de vacinação e tem um sistema de
saúde abrangente. Tínhamos tudo para ser um caso de sucesso no combate à
covid-19. Em vez disso, lamentamos uma tragédia de 400 mil mortos. Que os
representantes escolhidos pelo povo, na CPI, entendam as razões do fracasso e
proponham uma correção de rumo. De preferência, sem ser importunados por
jagunços digitais.
*Escritor, professor da FAAP e doutorando em Ciência Política na Universidade de Lisboa
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