O Estado de S. Paulo
No resfolego do poder à brasileira, todos
inovam, repetindo velhos chavões.
Numa vida longa, recordações se misturam a
fantasias, miragens e pesadelos. Acabam-se os projetos... Talvez nisso resida a
irritante ambiguidade dos idosos, pois envelhecer é descobrir que abotoar uma
camisa é mais complicado do que explicar uma época, um livro ou um regime
político.
O pouco conscientizado preconceito cósmico
contra os velhos tem raiz na consciência da fragilidade física, combinada a uma
enorme e orgulhosa resignação diante do fim da vida – uma dimensão que
inexoravelmente todos os idosos são forçados a vivenciar.
Como um filme meio terminado, a vida longa
desbota pessoas e circunstâncias, mas permite enxergar, com nitidez de lupa,
repetições, reprises, retornos – os ossos dos mortos. O verdadeiro caráter de
culturas, sociedades e pessoas. Nela, se enxergam melhor o falso, a ignorância
e a hipocrisia – esses companheiros do ser e estar humanos.
Como é que fui gostar daquele poeta afogado no seu sentimentalismo barato? Como é que eu fui simpático àquela ideologia política ultrarreducionista? Onde eu estava com a cabeça quando fui enganado e, pior que isso, enganei a mim mesmo escondendo minhas intenções, desejos e invejas? Como eu não saquei que a mentira não tem desculpa e que não se deve mentir para ninguém e, sobretudo, para “desconhecidos” – aqueles para os quais o mentir vira um enganar malandro?
A culpa é minha ou, como tantos outros, sou
apenas mais uma vítima de um enredamento sociopolítico da pior qualidade?
Os velhos são condenados à repetição.
Eu vivi os cinquenta anos em cinco de JK, o
suicídio de Vargas, a renúncia de Jânio, a resistência dos coronéis a Jango, o
parlamentarismo de ocasião, o golpe e a ditadura militar e uma alvissareira
abertura democrática. Achei que o governo petista (que, como dizia Lula, não
podia errar) ia efetivamente mudar, como indubitavelmente fez o de FHC com o
Plano Real (gerador da tal herança maldita...).
Meus enredos retornam, meus temores são
antigos. Minha esperança de ver o mundo público brasileiro livre de formalismos
legais obviamente contraditórios e cheios de múltiplas hipocrisias, hoje
expostas digitalmente, é diariamente arrasada.
Será que é o meu isolamento niteroiense que
me faz ver fantasmas na “política”? Esta pobre idealização nacional do poder
exclusivamente como vantagem pessoal e força; como capacidade de desordenar,
fingir e corromper? Será o “mandonismo”, traço que (como dizia a socióloga
Maria Isaura Pereira de Queiroz, uma pensadora do Brasil onde não cabem
mulheres) estaria hoje mais agudo do que nunca, confirmando a nossa repetitiva
vocação aristocrática e monárquica que sempre volta?
Estou farto de ver os mesmos filmes.
Liberais abrem portas para protoestalinistas, xerifes viram bandidos e
pilantras viram heróis. No resfolego do poder à brasileira, todos inovam,
repetindo velhos chavões.
Thomas Mann dizia que a repetição abole a
história. Repetir é abolir a diferença entre o ser e o ter sido. As repetições
estão impressas nas compulsões e dependências. Elas reiteram e revelam velhos e
mesquinhos modos de ser, ter e estar.
No Brasil, a racionalidade burocrática
transforma-se em papeladas ritualísticas. Max Weber falava da burocracia como
uma jaula de ferro, na qual todos estavam enclausurados, mas no Brasil, ela é
uma gaiola de ouro da qual escapam, por meio de malabarismos jurídicos,
criminosos agasalhados pela “política”. A nossa resistência à universalidade e
ao anonimato da lei é imoral.
A reação criminosa do governo à pandemia é
um exemplo perverso do peso das nossas hierarquias. Nela, “superpessoas”,
conforme digo no meu velho ensaio sobre o “você sabe com quem está falando?”,
repetem os privilégios de família e compadrio. O mandonismo nega a vacina
universal em favor da simpatia interesseira ou ocasional. Morre meio milhão por
vezo da danação do supremo mandatário do País.
Ser fiel a valores democráticos é um sinal
de inferioridade – de “babaquice” –, conforme ouço até hoje. O resultado do
privilégio de estar “por cima das normas”; de correspondê-las às suas
conveniências é a marca do autoritarismo nas sociedades de republicanismo
formal. Repúblicas que se recusam a discutir honestamente o protagonismo dos
resíduos de fidalguia e da escravidão em confronto com a imensa tarefa imposta
pelo igualitarismo.
Não deve espantar que estes sistemas se
caracterizem pela repetição! Pela intrusão de ‘aristocratismos’ nos seus
‘republicanismos’ e viceversa. O resultado é o populismo malandro e os
absolutismos cujos governos têm uma linguagem para os seus seguidores (“Deus
acima de tudo, a pátria acima de todos” e, é claro, “eu controlando tudo!”) e
outra para o público externo. Aí está o centro do despotismo repetitivo de
repúblicas mal-acabadas, conforme ensina Raymundo Faoro.
P.S.: Volto, se os planos não forem
modificados, na primeira quarta-feira de agosto. Mais velho, mais grato, mais
curtido e mais incerto.
*É antropólogo social e escritor, autor de ‘Fila e Democracia’
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