O Globo / Folha de S. Paulo
Uma boa ditadura resolve qualquer problema
Ele examinou a situação e ensinou:
— A China é capaz de lutar contra o
coronavírus tão rapidamente porque tem um partido político forte e um governo
forte. Porque o governo tem controle e poder de comando. O Brasil não tem isso,
nem outros países.
Bolsonaro? Não, Lula, o candidato mais bem
colocado nas pesquisas para a eleição presidencial do ano que vem.
O fascínio de Lula pela ditadura chinesa é
antigo. Em 2003, quando era presidente, disse que “a China acordou, e o mundo
está, pelo menos, preocupado com o potencial de crescimento da China. Antes de
Napoleão Bonaparte ter visitado a China, o hino brasileiro já falava que nós
somos um gigante”. (Napoleão nunca foi à China.)
Falar em “partido político forte” e
“governo forte” com “poder de comando” é maquiar a ditadura do centenário
Partido Comunista da China (PCC). Lastimar que o Brasil não tenha esses
instrumentos é um menoscabo às instituições brasileiras.
Partido e governos fortes são coisa que a China tem desde 1949, quando o Grande Timoneiro Mao Tsé-Tung foi para o poder. Lá, o presidente Liu Shaoqi saiu da linha, e Mao mandou-o para a cadeia, onde morreria em 1969, em condições deploráveis, com apenas sete dentes. Sua mulher foi escrachada e ficou encarcerada por mais de dez anos. Esse Império do Meio de partido e governos fortes poderia ser chamado de China 1.0. Nela, o país passou por uma grande fome com episódios de antropofagia e pelo menos 15 milhões de mortos.
Na China 2.0, Liu foi reabilitado. Sua
filha formou-se pela Universidade Harvard, fundou uma consultoria e nela
administrou parte da fortuna da família Rockefeller. Essa China 2.0 foi fundada
por Deng Xiaoping. Tornou-se um memorável modelo de progresso com ditadura. É
dessa China que Lula fala, mas nela o poder do partido não existiria sem as
bases deixadas por Mao.
Em 1974, quando Deng foi aos Estados
Unidos, teve de recorrer a um amigo para comprar US$ 35 de brinquedos para os
netos. Vinte anos depois, quando a China bombava, sua mulher tentou se matar
porque o filho do casal havia sido denunciado por ladroeiras.
Foi Deng, com seu jeitão de vovô austero,
que dizia precisar só de cigarros e de um pote para cuspir, que ordenou a
repressão aos manifestantes da Praça Tiananmen, em 1989. O segundo homem da
hierarquia chinesa era o secretário-geral do PCC, Zhao Ziyang. Teve melhor
sorte que Liu Shaoqi. Ficou em prisão domiciliar até morrer, em 2005.
Lá também existe uma Corte Suprema, mas,
com partido e governo fortes, foram para a cadeia milhares de burocratas
ladrões, inclusive os equivalentes ao presidente da Petrobras e ao chefe da
Polícia Federal. Não há notícia de administrador encarcerado e reabilitado.
Por ter um partido e um governo fortes, a
China pode ter controlado a pandemia com menos mortos que a democracia dos
Estados Unidos com o tatarana Donald Trump na Casa Branca. Contudo Lula não
deveria ter exagerado no exemplo.
O médico Li Wenliang alertou sobre o vírus no dia 30 de dezembro de 2019. Três dias depois, foi obrigado a assinar um documento confessando que teve um “comportamento ilegal”. Àquela altura, 425 pessoas haviam morrido e 20 mil estavam contaminadas pelo mundo afora. Inclusive ele, que viria a morrer em fevereiro.
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