EDITORIAIS
Chega de chantagem
O Estado de S. Paulo
A Nação não suporta mais chantagem. Basta
de ameaças às instituições da República e ao regime democrático que os
brasileiros reconquistaram não sem grande sacrifício. É hora de coragem e
firmeza na defesa da liberdade.
O presidente Jair Bolsonaro não reúne mais
as condições para permanecer no cargo. Acossado por sucessivos reveses morais,
políticos, penais e administrativos, Bolsonaro parece ter mandado às favas os
freios internos que o faziam ao menos fingir ser um democrata. Sua natureza
liberticida falou mais alto. Como alguém que não tem mais nada a perder, o
presidente se insurgiu contra a Constituição ao ameaçar de forma explícita a
realização das eleições no ano que vem, como a Lei Maior determina que haverá.
“Ou fazemos eleições limpas no Brasil, ou não
temos eleições”, afirmou Bolsonaro ao punhado de apoiadores que batem ponto no
Palácio da Alvorada. Todos sabem o que Bolsonaro quer dizer com eleições
“limpas”: eleições do jeito que ele quer, com o resultado ao qual ele almeja. O
presidente chantageia a Nação. Como um menino mimado, diz que, se não lhe derem
o voto impresso, ele inflama sua horda de camisas pardas e instala a baderna.
Uma pessoa com esta índole é indigna da Presidência da República.
A reação da sociedade a esta chantagem determinará o tipo de país que o Brasil haverá de ser daqui em diante. É absolutamente inconcebível que o chefe de Estado e de governo ameace impunemente fazer letra morta de uma cláusula pétrea da Constituição. Os brasileiros estão diante de uma disjuntiva. Ou bem se reassegura o Estado Democrático de Direito consagrado pela Lei Maior ou Bolsonaro segue como presidente.
Certamente, Bolsonaro se sentiu seguro para
subir o tom de suas cominações após a divulgação da nota subscrita pelo
ministro da Defesa, Walter Braga Netto, e pelos comandantes da Marinha, do
Exército e da Aeronáutica, respectivamente, o almirante Almir Garnier Santos, o
general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira e o brigadeiro Carlos de Almeida
Batista Júnior. A pretexto de repreender um senador por suas declarações –
isto, por si só, uma excrescência –, os quatro deixaram no ar a ameaça de
ruptura institucional ao afirmarem que as Forças Armadas constituem “fator
essencial de estabilidade do País”. Ora, se há instabilidade no Brasil hoje não
é por outra razão que não política, e em grande medida provocada por Bolsonaro.
E numa democracia as instabilidades políticas são resolvidas no âmbito
político, vale dizer, civil.
Que Braga Netto assinasse uma nota como
aquela, era de esperar. Afinal, não se trata mais de um militar da ativa, mas
de um político, demissível, pois, a qualquer tempo. Espantoso foi o endosso às
urdiduras do Palácio do Planalto dado pelos comandantes das três Forças,
autoridades de Estado que são, não de governo. Deles não se esperava uma palavra
sequer no que concerne aos assuntos próprios das lides políticas.
O presidente do Congresso, senador Rodrigo
Pacheco (DEM-MG), reagiu à altura das afrontas, mas não sem antes ter sido
pressionado para tal. Em entrevista coletiva, Pacheco reafirmou a independência
do Poder Legislativo e classificou como “inimigo da Nação” todo aquele que
“pretender algum retrocesso no Estado Democrático de Direito”. O senador ainda
refutou “especulações sobre as eleições de 2022” e assegurou que a realização
do pleito é “inegociável”.
Igualmente republicana foi a reação do
ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Barroso afirmou que qualquer tentativa de Bolsonaro de obstruir a realização
das eleições de 2022 configura crime de responsabilidade. Seria mais um no rol
de crimes de responsabilidade que o presidente já cometeu. Ao Estado, a
senadora Simone Tebet (MDB-MS) afirmou que a CPI da Covid já reuniu “elementos
suficientes” para pedir a cassação do presidente da República.
Cabe agora ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), mostrar ao País que tem brio e espírito republicano. Lira deve dar seguimento a 1 dos 123 pedidos de impeachment contra Bolsonaro que pairam sobre sua mesa. Tibieza não assegura lugar de honra na História.
A que o Senado deve estar atento
O Estado de S. Paulo
A discussão sobre a religião do futuro ministro do Supremo não tem relevância
Em reunião no dia 6 de julho com ministros
de Estado, o presidente Jair Bolsonaro informou que vai indicar para o Supremo
Tribunal Federal (STF) o advogado-geral da União, André Mendonça. O ministro
Marco Aurélio Mello se aposentará no dia 12 de julho.
No dia anterior, dia 5, o presidente Jair
Bolsonaro já havia tratado do assunto. “Vou indicar (para o STF) um evangélico
agora”, disse Bolsonaro a apoiadores, na frente do Palácio da Alvorada. André
Mendonça é pastor da Igreja Presbiteriana Esperança de Brasília.
Em conformidade com o caráter laico do
Estado, a Constituição de 1988 não estabelece nenhuma condição a respeito da
religião dos integrantes do Supremo, bem como de nenhum outro cargo público.
Todos são iguais perante a lei, com os mesmos direitos e os mesmos deveres.
A Constituição fixa, isso sim, outras
condições para os ministros do Supremo. “O STF compõe-se de 11 ministros,
escolhidos dentre cidadãos com mais de 35 e menos de 65 anos de idade, de
notável saber jurídico e reputação ilibada.”
Essas duas últimas condições não são
requisitos abstratos ou de difícil aferição. É preciso que não haja nenhuma
dúvida sobre o notável saber jurídico e a reputação ilibada do indicado. Se
houver alguma inquietação a respeito de algum dos dois pontos, a exigência
constitucional não está preenchida – e o Senado deve barrar a indicação.
Sob a perspectiva constitucional, a
discussão sobre a religião do futuro ministro do Supremo não tem nenhuma
relevância. Observa-se, assim, mais uma tentativa do presidente Jair Bolsonaro
de confundir o debate público.
No processo de nomeação de um novo ministro
do STF, o decisivo é avaliar se a trajetória da pessoa indicada revela a
independência necessária para defender a Constituição, especialmente nos casos
que exijam contrariar aliados políticos, irmãos de fé ou parceiros de família.
Esse aspecto deve ser avaliado pelo Senado
em todas as indicações para o Supremo. Mas, no caso de Jair Bolsonaro, o
assunto ganha especial gravidade, em razão das próprias declarações do
presidente.
No ano passado, Jair Bolsonaro explicou sua
escolha para o STF da seguinte maneira: “Kassio Nunes já tomou muita tubaína
comigo. (...) A questão de amizade é importante, né?”. Diante desses critérios,
sem nenhuma aderência aos princípios republicanos, o Senado tem de estar
especialmente atento para o comportamento do indicado ao Supremo na sabatina
que fará.
Ressalta-se que tal avaliação não consiste
em exercício de futurologia, como se os senadores tivessem de adivinhar quais
serão as futuras atitudes da pessoa indicada, uma vez ocupando uma cadeira no
Supremo. O exame é outro. Trata-se de verificar qual é o grau de compromisso
com a Constituição que o histórico do candidato revela.
Adverte-se, desde já, que a atuação pública
do atual advogado-geral da União tem deixado a desejar precisamente no quesito
mais essencial para o cargo de ministro do STF: o respeito à Constituição deve
ter precedência sobre lealdades políticas ou relações pessoais. Nos últimos
meses, especialmente durante o período em que esteve à frente do Ministério da
Justiça, André Mendonça notabilizou-se por sujeitar os mandamentos
constitucionais aos interesses de Jair Bolsonaro.
Enquanto esteve no Ministério da Justiça,
André Mendonça pôs o aparato estatal para perseguir opositores do governo
Bolsonaro. Por exemplo, instou os órgãos de investigação a atuar contra um
professor que instalou, no Tocantins, dois outdoors críticos a Jair Bolsonaro.
Um Estado Democrático de Direito demanda outro tipo de compromisso com as
garantias individuais. Não se pode esquecer de tal forma a Constituição para
agradar ao presidente da República e sua turba.
O Senado não tem de olhar para a religião de André Mendonça. Sua condição de pastor evangélico não o qualifica nem o desqualifica para o cargo. A função de ministro do Supremo é essencialmente laica e diz respeito a todos os brasileiros. Trata-se de verificar se, no exercício de suas funções públicas, o indicado tem inegáveis condições de manifestar respeito incondicional à Constituição.
A epidemia da pobreza
O Estado de S. Paulo
Desigualdade bateu recorde no Brasil um ano depois da chegada da pandemia
A maioria dos brasileiros assistiu de longe
à festa econômica do primeiro trimestre, quando o Produto Interno Bruto (PIB),
segundo as contas oficiais, cresceu 1,2% em relação aos três meses finais do
ano passado. Milhões, no entanto, nem mesmo puderam espiar a distância.
Tentavam sobreviver sem emprego e sem renda, enquanto mais um recorde sinistro
era batido. No período janeiro-março, a desigualdade de renda proveniente no
trabalho foi a maior da série iniciada no fim de 2012, de acordo com o Centro
de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV). Foi esse, até agora, o
pior ponto da crise social ocasionada pela pandemia.
O novo coronavírus pode ter provocado a
maior parte do estrago, desarrumando a economia, matando milhares de
trabalhadores e destruindo empregos. Mas o vírus teve a colaboração inegável do
governo, com a redução do auxílio emergencial entre setembro e dezembro e sua
suspensão nos primeiros meses deste ano. Além disso, o Brasil entrou em 2021
sem Orçamento aprovado e sem um programa federal de incentivo econômico. O
único estímulo restante, nesse período, foi a política mantida pelo Banco
Central (BC). Mesmo com alguma elevação, os juros básicos permaneceram baixos,
favorecendo a expansão do crédito.
Sem ações do Executivo para conter o
desemprego e sem ajuda financeira da União, as famílias mais vulneráveis
afundaram na pobreza. No primeiro trimestre de 2020, o Índice de Gini, usado
para medir a desigualdade de renda, estava em 0,642. No fim do ano havia
chegado a 0,669, já refletindo amplamente os efeitos econômicos e sociais da
pandemia. No trimestre inicial de 2021 atingiu 0,674, o ponto mais alto da
série. O Índice de Gini varia de 0 a 1. Quanto mais alto, maior a desigualdade.
Esse indicador é usado para mostrar a distribuição – ou concentração – de
qualquer bem.
É fácil perceber a piora do quadro quando
se considera a variação da renda por habitante. No ano passado o PIB encolheu
4,1%. Uma das consequências foi a redução da fatia correspondente, em média, a
cada brasileiro. O bolo diminuiu, enquanto o número de comensais continuou
aumentando. Como o acesso à renda é desigual, alguns brasileiros – a maioria –
perderam mais do que outros.
A perda foi agravada pela inflação. Em
períodos de baixa atividade e de menor demanda por bens e serviços, os preços
tendem normalmente a subir menos ou a diminuir. Desta vez ocorreu algo
diferente, com efeitos mais sensíveis nas economias emergentes e em
desenvolvimento. A inflação piorou, puxada pelas cotações internacionais de
alimentos e minérios. Essas cotações foram infladas principalmente pela
recuperação chinesa.
No Brasil, os preços foram ainda turbinados
pela alta do dólar (o real foi uma das moedas mais desvalorizadas). O surto
inflacionário atingiu mais duramente as famílias mais pobres. Esse efeito
desigual se manteve no segundo trimestre. Nos 12 meses até maio, a inflação das
famílias de menor renda atingiu 8,91%, enquanto a do grupo superior ficou em
6,33%. Também esta é uma taxa muito alta, indicativa de um sério desajuste.
Mas, de toda forma, também a inflação é um componente importante do quadro das
desigualdades econômicas e sociais.
Novas ações de apoio financeiro aos pobres estão em estudo no Executivo. Retomado em abril, o auxílio emergencial poderá ser mantido até outubro. Também se fala de uma ampliação do Bolsa Família. Antes chamado de “Bolsa Farinha”, esse programa é agora valorizado pelo presidente Jair Bolsonaro, candidato à reeleição. A primeira obrigação do Executivo, porém, é consertar os estragos econômicos e sociais por ele mesmo causados – com a suspensão do auxílio emergencial entre janeiro e março, o abandono precipitado das ações anticrise, o atraso na vacinação e a campanha presidencial contra o isolamento e as máscaras. Tudo isso está na contramão das políticas defendidas, por exemplo, pelo Banco Mundial e pelo primeiro time mundial dos economistas e epidemiologistas. O custo desses erros vai principalmente para os pobres.
Espiral descendente
Folha de S. Paulo
Adesão a impeachment e quadro eleitoral
revelam desgaste em curso de Bolsonaro
Enquanto o presidente Jair Bolsonaro, ao
fustigar diariamente as instituições eleitorais do país, aumenta uma pilha de
crimes de responsabilidade em potencial, a sua perspectiva de terminar o
mandato e obter a reeleição se reduz.
É provável que o segundo fato explique o
desespero nas invectivas patológicas contra ministros e cortes —rechaçadas,
de pronto, pelos presidentes do Senado e do Tribunal Superior Eleitoral.
Se for isso, pode-se esperar mais esperneio
autoritário bolsonarista após a divulgação dos resultados da pesquisa Datafolha
sobre impeachment e intenção de voto.
Pela primeira vez, forma-se maioria
favorável à abertura de processo por crime de responsabilidade na Câmara dos
Deputados. A cada 100 eleitores entrevistados pelo instituto, 54 apoiam a
deflagração do impeachment e 42 a rejeitam. Em menos de seis meses, inverteu-se
a situação apurada na pesquisa da penúltima semana de janeiro.
Questionados sobre a capacidade do
presidente de liderar o país, 63% responderam que ela não existe, outro recorde
numa trajetória galopante de aversão. Não votariam de jeito nenhum em Bolsonaro
no escrutínio de outubro do ano que vem 59% dos consultados. Nenhum outro nome
testado obteve mais que 37% de rejeição eleitoral.
Nas
simulações estimuladas de primeiro turno, Bolsonaro tem 25% das
intenções de voto, mesmo patamar dos que consideram bom ou ótimo o seu governo.
Luiz Inácio Lula da Silva aparece 21 pontos percentuais à frente do incumbente.
Na hipótese de segundo turno, o petista
bate Bolsonaro com 27 pontos de margem (58% a 31%). O atual presidente perde
dos três nomes testados no Datafolha —Lula, Ciro Gomes (PDT) e João Doria
(PSDB).
O castigo na popularidade e nas condições
de sobrevida política do presidente da República é pronunciado nas classes
populares. Entre os que têm renda familiar mensal até R$ 2.200 —57% do
eleitorado—, 60% defendem o impeachment e 63% recusam votar em Bolsonaro.
A foto deste Datafolha ainda assegura ao
presidente o posto de principal perseguidor de Lula nas cogitações para 2022,
mas a sequência de pesquisas denota um processo de desgaste não estancado.
A continuar a espiral descendente, em pouco
tempo o mandatário avistará competidores no retrovisor.
A seu favor, Jair Bolsonaro tem um horizonte de recuperação provável do emprego
e de superação paulatina da pandemia, pelo avanço agora acelerado da vacinação.
A questão é saber se ainda resta paciência
em setores populosos do eleitorado com a desastrosa administração federal. Caso
a resposta seja negativa, não apenas a reeleição estará comprometida, mas
também a sequência final do mandato, pois aumentará a adesão social e política
ao impeachment.
Barrar os supersalários
Folha de S. Paulo
Regular teto no serviço público dará maior
legitimidade à reforma administrativa
Com tramitação em regime de urgência,
finalmente deve ser votado na Câmara dos Deputados o projeto que restringe a
possibilidade de burlas ao teto constitucional de remuneração do funcionalismo.
Que o dispositivo, já aprovado pelo Senado
em 2016, precise reafirmar em detalhe o que já está escrito na Carta é
testemunho do descompromisso com as regras, em especial pelos que mais deveriam
zelar por elas. É na magistratura e no Ministério Público, infelizmente, onde
se encontram os maiores abusos na forma de supersalários.
Ao longo dos anos, as corporações foram
criativas em criar penduricalhos e toda sorte de subterfúgios para escapar dos
limites e ampliar suas regalias. Muitos desses privilégios nem existem em lei,
tendo sido criados por atos administrativos que não raro ficam ocultos nos
escaninhos da burocracia.
É passada a hora, portanto, de fechar esses
espaços e submeter as remunerações ao escrutínio da sociedade. O projeto avança
nessa direção ao limitar todos os vencimentos ao teto inscrito na Constituição,
de R$ 39,3 mil mensais.
São regulamentados 30 itens que podem ficar
fora do teto, o que inclui o notório auxílio-moradia. Mas o projeto regulamenta
as condições e restaura o objetivo original de pagá-lo apenas no caso de
mudança de residência por ato de ofício ou em virtude de mandato eletivo.
Outro item importante é a proibição de
exclusão do teto para o pagamento de férias não gozadas maiores que 30 dias,
prática utilizada por juízes, que têm direito a absurdas férias de 60 dias,
para engordar seus vencimentos.
Há avanço também na transparência. O
projeto determina que não poderá ser invocado sigilo no fornecimento de
informações para os órgãos responsáveis por aferir a aderência dos valores
recebidos aos limites, além de prever o desenvolvimento de um sistema integrado
de dados.
Constituirá crime e ato de improbidade
administrativa autorizar a exclusão de pagamentos dos limites legais, bem como
a omissão ou prestação de informação falsa.
Embora a economia estimada para a União
fique em torno de R$ 3 bilhões anuais, quantia modesta frente às despesas
gerais, acabar com os supersalários é passo fundamental para moralizar o
serviço público e conferir mais legitimidade à reforma administrativa,
eliminando privilégios de poucos.
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