O Estado de S. Paulo
Em vez de atacar Aziz, comandantes deveriam
rejeitar a militarização do governo federal
O Brasil destacou-se em Cannes, mais uma
vez, com o diretor Spike Lee, presidente do júri do festival de cinema,
igualando o presidente Jair Bolsonaro a Donald Trump e a Vladimir Putin. Trump,
ídolo do presidente brasileiro, foi derrotado ao tentar a reeleição, mas, antes
de partir, estimulou uma invasão do Congresso. Seu discípulo anotou a lição e
já anunciou algo parecido no Brasil. Em 7 de janeiro, um dia depois do ataque
ao Capitólio, Jair Bolsonaro ameaçou: “Se nós não tivermos o voto impresso em
22, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que o dos
Estados Unidos”. Na ocasião, ele voltou a falar de fraude na eleição de 2018 –
sem prova, como sempre, e pondo em dúvida, como de costume, a seriedade da
Justiça Eleitoral.
Como Trump, Bolsonaro fracassará na tentativa de reeleição, se o resultado no próximo ano refletir as atuais pesquisas de intenção de voto. Além disso, a derrota será por diferença bem maior que a verificada nos Estados Unidos. Lula, segundo as sondagens, será o mais votado, com folga, no primeiro turno. No segundo, o atual presidente será batido por qualquer dos principais concorrentes.
As chamadas forças de centro ainda poderão
juntar-se para apoiar um nome promissor. De fato, talvez nem haja candidatura
Bolsonaro, em 2022, se o presidente da Câmara desengavetar os pedidos de
impeachment. Em dois anos e meio de atos e palavras irresponsáveis, de mistura
de assuntos familiares com assuntos públicos, de mentiras e desgoverno,
acumularam-se razões mais que suficientes para a extinção de um mandato
desastroso. Mas em relação a seu guru americano o presidente Bolsonaro tem
alguma vantagem – vantagem para ele e para sua família, sem dúvida, e imensa
desvantagem para os cidadãos empenhados em ganhar a vida seriamente.
Parte dessa vantagem é a relação entre
governo e Forças Armadas, um vínculo muito diferente, na gestão Bolsonaro, do
previsto na Constituição brasileira e do observado nos Estados Unidos. Exemplo:
em junho do ano passado, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas americanas,
general Mark Milley, pediu desculpas por haver acompanhado o presidente Trump
numa caminhada até uma igreja próxima da Casa Branca. Diante da igreja, o
presidente posou empunhando uma Bíblia. A polícia abriu caminho para o
presidente dispersando com violência um protesto contra o racismo.
“Eu não deveria estar lá”, disse o general.
“Minha presença causou a impressão de que os militares estão envolvidos em
política interna. Precisamos”, acrescentou, “honrar um princípio essencial da
República: o de que as Forças Armadas não são políticas.” As tentativas de
Trump de envolver militares na repressão a manifestações de rua foram
criticadas por seu secretário da Defesa, por ex-secretários e por mais de 80
altos oficiais. As Forças Armadas dos Estados Unidos mostram seu poderio, todos
os dias, em boa parte do mundo, mas são discretas em casa e respeitam a
democracia.
No Brasil de Bolsonaro, um general da ativa
foi nomeado ministro da Saúde, encheu sua pasta de militares, todos ou quase todos
sem competência para as novas funções, e resumiu numa frase escandalosa sua
fidelidade ao chefe: um manda, outro obedece. Outros ministérios e secretarias
já haviam sido entregues a pessoas de origem militar.
Confiado ao general Pazuello, ao coronel Elcio
Franco (secretário executivo) e a figuras como a Capitã Cloroquina, o
Ministério da Saúde atuou de forma desastrosa durante a pandemia. O envio do
“kit covid” a Manaus talvez tenha sido a obra-prima da gestão Pazuello. O kit
famigerado continha maravilhas como hidroxicloroquina e ivermectina,
comprovadamente ineficazes contra a covid-19, mas as pessoas hospitalizadas
precisavam de oxigênio para respirar. O conjunto da obra, no entanto, é muito
mais impressionante que qualquer obra-prima, desde a militarização do setor de
saúde.
Nomes de funcionários conhecidos pela
patente militar, com destaque para o coronel Elcio Franco, foram citados por
depoentes, nas sessões da CPI da Covid. As citações tornaram-se mais chocantes
quando surgiram acusações de corrupção na negociação de vacinas – malandros
tentando lucrar enquanto faltavam imunizantes e as mortes pela covid se
multiplicavam. Numa das sessões, o presidente da CPI, senador Omar Aziz, falou
sobre como “os bons das Forças Armadas” deveriam estar envergonhados com
algumas pessoas envolvidas em falcatruas. Essas pessoas foram descritas como o
“lado podre das Forças Armadas”.
Os comandantes militares, liderados pelo ministro da Defesa, repudiaram a fala de Aziz como “grave, infundada e irresponsável”. Nem infundada, nem irresponsável, de fato. O ministro e os comandantes voltaram-se contra o alvo errado, em vez de condenar o envolvimento de militares em escândalos e a desastrada militarização do governo pelo presidente Bolsonaro. Fariam muito melhor se aprendessem com a lamentável experiência recente, meditassem sobre o exemplo do general Mark Milley e se indignassem quando Bolsonaro usa a expressão “meu Exército”.
*Jornalista
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