O Globo
O Brasil era um lugar de júbilo. Como
aceitamos abandonar nossa qualidade de superar tragédias rindo delas?
Segundo o que escreveu Joaquim Ferreira dos
Santos, em “Feliz 1958 — O ano que não deveria terminar”, aquele foi o ano que
marcou o início de um novo Brasil que, na minha opinião, assumia o que já era
desde muito tempo. “Niemeyer levantou as colunas do Alvorada, o Teatro de Arena
levantou o pano e Tom Jobim levantou a tampa do piano”, diz a citação que
Ricardo Cota faz, na magnífica biografia de Niomar Moniz Sodré, brasileira
danada. “Ao fundo, levantando a voz, JK gritava: pra cima com a viga, moçada”.
E a gente continuava a levantar o Brasil.
Nunca tive notícia deste país correndo o perigo de se entregar à dor. Quando isso estava para acontecer, como em 1950, havia sempre uma data feliz para se celebrar, gostássemos dela ou não. O Brasil deixava o sentimento ruim para depois da quarta-feira, quando acordava cansado demais para lembrar do que fosse capaz de lhe embotar uma história de ilusões. E se as datas de celebração não coincidissem com a vontade de chorar, tínhamos sempre música para ouvir, livros para ler, filmes para assistir, anedotas que, mesmo que não nos fizessem rir, nos faziam subestimar o mau pedaço vivido. O Brasil era obrigatoriamente um lugar de júbilo, não era de nosso feitio sofrer.
Como é que se podia cair na fossa num país
que ouvia Dorival Caymmi e Ary Barroso? Carlinhos e Cartola? Eles podiam até
recorrer a sinuosas e tristes harmonias que falavam mais à metafísica do
sofrimento do que à matéria do corpo. Mas as canções celebravam nosso caráter e
o lugar que julgávamos nosso, neste planeta que só tinha a nós para se safar da
depressão. Um lugar ao sol, onde se lia Jorge Amado e Aníbal Machado, uma
literatura que namorava Tieta do Agreste e João Ternura, Gabriela, Cravo e
Canela.
Não é que o Brasil vivesse sorrindo. Ou
sorria, mesmo se sentindo mal. Era o jeito que o Brasil tinha de reagir às
frustrações do futebol e ao golpe dos militares, à corrupção que não cessava, à
desigualdade e à fome, à tristeza de ser brasileiro. Mas, num canto qualquer,
havia sempre um sorriso maroto do Grande Otelo ou um gol de placa do Pelé.
Havia a esperança e a certeza de que era preciso ser o que sempre fomos, desde
o Zumbi e o padre Antônio Vieira, para fazer valer nosso mundo novo. Agora, aí
está a família Bolsonaro, t’esconjuro!, com a armadura do demônio à mão, sempre
pronta para vesti-la quando for preciso. O Brasil hoje vive na esperança de que
o diabo se converta.
Em 1919, depois da “gripe espanhola” que
deixou tantos mortos sem socorro possível, fizemos o carnaval mais animado de
todos os tempos. Cancelamos clássicos desfiles e abandonamos o corso familiar;
partimos para as festas e os bailes, para o delírio improvisado. O mundo não
entendeu nosso jeito de reagir à tragédia inevitável, em algumas culturas
conservadoras ganhamos até fama de irresponsáveis. Hoje, somos piada
internacional, graças ao que fizeram de nós. E nos curvamos, aceitamos
paralisados o que fizeram de nós.
Como é que nós, que sempre cultivamos o soft power da esperança, que sempre desejamos, com nossa arte e nossa cultura, contribuir com uma nova ideia de mundo para a civilização, onde só pode caber a alegria de viver, mesmo nos momentos incontornavelmente tristes da vida; como é que nós que geramos Carlos Drummond de Andrade e Nelson Pereira dos Santos, Jorge de Lima e Glauber Rocha, o Modernismo, a Bossa Nova e o Cinema Novo; como é que nós aceitamos abandonar nossa qualidade única de superar as tragédias rindo delas?
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