O Globo
Aos 58 anos de idade, cabeleira grisalha vicejante e porte condizente com o de
tenente-coronel da Força Aérea Brasileira (na reserva desde 2006), Marcos Cesar
Pontes tem desempenhado a contento um dos cargos mais pusilânimes da República
criados pelo capitão-presidente: participante/figurante nas lives semanais do
mandatário do Brasil. (Nas horas vagas, o astronauta Marcos Pontes também é
ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações.)
Embora seja presença frequente no espetáculo Grand Guignol encenado por Jair Bolsonaro às quintas-feiras, Pontes não é páreo para o homem forte da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães — este sim, o participante número um em animação e frequência no quadro. Não se tem notícia de nenhum ministro bolsonarista que tenha declinado de participar. Muitos fazem apenas cara de paisagem quando o presidente profere horrores (diligentemente traduzidos em libras graças à ação social a favor dos surdos introduzida pela primeira-dama, Michelle). Difícil saber o que será mais ignóbil para as respectivas biografias quando estiverem fora do governo — se a expressão pretensamente neutra/distraída ante o linguajar do chefe ou o semissorriso dúbio, a ser usado no futuro como justificativa de “constrangimento”. A covardia cívica é a mesma.
Na live da última quinta-feira, Pontes
talvez não tivesse sido alertado de que se tornaria testemunha do reverberante
“Caguei pra CPI” presidencial, dirigido a senadores da República. Mas o
sorrisinho dúbio com que reagiu foi sua opção pessoal. Nestes tempos de fervura
máxima do presidente, a degringolada moral, cívica e civilizatória dos
agarrados a seu governo tampouco deve ser varrida para debaixo do tapete. Faz
parte.
Quanto à autocombustão pública de Jair
Bolsonaro, que nesta semana atingiu um patamar crítico e serial, ela tem tudo
para se agravar. As causas que a alimentam não apontam para qualquer mudança de
direção. A CPI da Covid no Senado já deu mostras suficientes de que nem pensa
em arrefecer o trabalho. Ao contrário — a cada sessão, seus integrantes
desnudam novas camadas da responsabilidade do governo na mortandade das nossas
mais de 530 mil vítimas da pandemia. E a laboriosa exposição do vasto cipoal de
ilícitos que envolvem a compra de vacinas também avança.
A crescente impopularidade do presidente,
por seu lado, tampouco aponta para um horizonte mais ameno. A julgar pela
pesquisa Datafolha divulgada na quinta-feira do “Caguei” presidencial, talvez
não exista respirador democrático (frise-se o “democrático”) capaz de impedir
uma surra eleitoral de Jair Bolsonaro em 2022.
Não bastasse o pior índice de reprovação
nacional (51%) desde que assumiu o poder, Bolsonaro se viu retratado pela
maioria dos brasileiros como desonesto, falso, incompetente, despreparado,
indeciso, autoritário, pouco inteligente. Parabéns ao Datafolha pelos
eufemismos. O único segmento em que foi menos mal avaliado é o empresarial. De
resto, o presidente eleito em 2018 por 57 milhões de votos hoje se vê
reprovado, com variações, em todas as regiões do país, por todas as categorias
de renda, cor, instrução, idade ou sexo. As variáveis que resultaram na maior
invertida em relação a dois anos atrás referem-se a “sincero/falso” (20 pontos
de diferença), “pouco inteligente” (18) e “muito inteligente” (19).
Diante de notícias tão indigestas, o
capitão proclamou fraudada não apenas a pesquisa, como voltou a investir contra
o sistema eleitoral democrático — passado e futuro. Sem apresentar prova,
garantiu novamente em entrevista à Rádio Guaíba que houve fraude na eleição de
Dilma Rousseff em 2014 e que haverá nova fraude em 2022 se não for instituído o
voto impresso, eufemismo para “se eu não for declarado vencedor”.
Na sexta-feira, em conversa com apoiadores
que o esperavam à saída do Palácio da Alvorada, Jair retomou seu linguajar autoral:
—Pessoal, presta atenção. É sério o que vou
falar aqui. Tem muita gente filmando, então tem repercussão. Lá atrás, no
passado (tô com 66 anos), sempre se buscava aí fraudar, de uma forma ou outra,
as eleições, no papel, botando mesário pra contar favorável a ele, anulando
votos que interessavam… Porque é luta do poder. Hoje em dia, mudou. É de cima
para baixo. A fraude está no TSE [Tribunal Superior Eleitoral], para não ter
dúvida.
Tanto descontrole tinha por combustível o
dado mais devastador para os rancores presidenciais: segundo outra pesquisa
divulgada pelo Datafolha, o “nove dedos”, como o presidente do Brasil se refere
a Luiz Inácio Lula da Silva, derrotaria Bolsonaro por 58% a 31% (quase o dobro
dos votos) num eventual segundo turno em 2022. Somos parte dos próximos
capítulos, sejam quais forem.
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