domingo, 11 de julho de 2021

Dorrit Harazim - Em decomposição

O Globo

Aos 58 anos de idade, cabeleira grisalha vicejante e porte condizente com o de tenente-coronel da Força Aérea Brasileira (na reserva desde 2006), Marcos Cesar Pontes tem desempenhado a contento um dos cargos mais pusilânimes da República criados pelo capitão-presidente: participante/figurante nas lives semanais do mandatário do Brasil. (Nas horas vagas, o astronauta Marcos Pontes também é ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações.)

Embora seja presença frequente no espetáculo Grand Guignol encenado por Jair Bolsonaro às quintas-feiras, Pontes não é páreo para o homem forte da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães — este sim, o participante número um em animação e frequência no quadro. Não se tem notícia de nenhum ministro bolsonarista que tenha declinado de participar. Muitos fazem apenas cara de paisagem quando o presidente profere horrores (diligentemente traduzidos em libras graças à ação social a favor dos surdos introduzida pela primeira-dama, Michelle). Difícil saber o que será mais ignóbil para as respectivas biografias quando estiverem fora do governo — se a expressão pretensamente neutra/distraída ante o linguajar do chefe ou o semissorriso dúbio, a ser usado no futuro como justificativa de “constrangimento”. A covardia cívica é a mesma.

Na live da última quinta-feira, Pontes talvez não tivesse sido alertado de que se tornaria testemunha do reverberante “Caguei pra CPI” presidencial, dirigido a senadores da República. Mas o sorrisinho dúbio com que reagiu foi sua opção pessoal. Nestes tempos de fervura máxima do presidente, a degringolada moral, cívica e civilizatória dos agarrados a seu governo tampouco deve ser varrida para debaixo do tapete. Faz parte.

Quanto à autocombustão pública de Jair Bolsonaro, que nesta semana atingiu um patamar crítico e serial, ela tem tudo para se agravar. As causas que a alimentam não apontam para qualquer mudança de direção. A CPI da Covid no Senado já deu mostras suficientes de que nem pensa em arrefecer o trabalho. Ao contrário — a cada sessão, seus integrantes desnudam novas camadas da responsabilidade do governo na mortandade das nossas mais de 530 mil vítimas da pandemia. E a laboriosa exposição do vasto cipoal de ilícitos que envolvem a compra de vacinas também avança.

A crescente impopularidade do presidente, por seu lado, tampouco aponta para um horizonte mais ameno. A julgar pela pesquisa Datafolha divulgada na quinta-feira do “Caguei” presidencial, talvez não exista respirador democrático (frise-se o “democrático”) capaz de impedir uma surra eleitoral de Jair Bolsonaro em 2022.

Não bastasse o pior índice de reprovação nacional (51%) desde que assumiu o poder, Bolsonaro se viu retratado pela maioria dos brasileiros como desonesto, falso, incompetente, despreparado, indeciso, autoritário, pouco inteligente. Parabéns ao Datafolha pelos eufemismos. O único segmento em que foi menos mal avaliado é o empresarial. De resto, o presidente eleito em 2018 por 57 milhões de votos hoje se vê reprovado, com variações, em todas as regiões do país, por todas as categorias de renda, cor, instrução, idade ou sexo. As variáveis que resultaram na maior invertida em relação a dois anos atrás referem-se a “sincero/falso” (20 pontos de diferença), “pouco inteligente” (18) e “muito inteligente” (19).

Diante de notícias tão indigestas, o capitão proclamou fraudada não apenas a pesquisa, como voltou a investir contra o sistema eleitoral democrático — passado e futuro. Sem apresentar prova, garantiu novamente em entrevista à Rádio Guaíba que houve fraude na eleição de Dilma Rousseff em 2014 e que haverá nova fraude em 2022 se não for instituído o voto impresso, eufemismo para “se eu não for declarado vencedor”.

Na sexta-feira, em conversa com apoiadores que o esperavam à saída do Palácio da Alvorada, Jair retomou seu linguajar autoral:

—Pessoal, presta atenção. É sério o que vou falar aqui. Tem muita gente filmando, então tem repercussão. Lá atrás, no passado (tô com 66 anos), sempre se buscava aí fraudar, de uma forma ou outra, as eleições, no papel, botando mesário pra contar favorável a ele, anulando votos que interessavam… Porque é luta do poder. Hoje em dia, mudou. É de cima para baixo. A fraude está no TSE [Tribunal Superior Eleitoral], para não ter dúvida.

Tanto descontrole tinha por combustível o dado mais devastador para os rancores presidenciais: segundo outra pesquisa divulgada pelo Datafolha, o “nove dedos”, como o presidente do Brasil se refere a Luiz Inácio Lula da Silva, derrotaria Bolsonaro por 58% a 31% (quase o dobro dos votos) num eventual segundo turno em 2022. Somos parte dos próximos capítulos, sejam quais forem.

 

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