Folha de S. Paulo
Um soneto de juventude, deixado fora de sua
obra, já continha ânsias de estrangulamento
Ferreira
Gullar (1930-2016), o poeta brasileiro que mais escreveu em
poesia sobre poesia, tem seus livros reunidos em "Toda Poesia", pela
Companhia das Letras. Lá estão "A Luta Corporal" (1954), os cordéis,
as pedras-de-toque, tudo. Menos o livro de estreia, "Um Pouco Acima do
Chão" (1949), impresso em sua São Luís aos 18 anos e cujo parnasianismo o
maduro Gullar rejeitou.
Mas será possível a um autor apagar parte de sua obra? Reencontrei outro dia o "Caderno de Autógrafos", uma antologia de poemas manuscritos que me foi presenteada em criança por um avô. E lá está, entre poemas à mão por Gilka Machado, Olegario Marianno e outros, um "Soneto para a Mão Direita de S. Francisco de Assis". Assinado: "Ferreira Gullar 5 nov 1949".
Diz: "Estranha mão que sobre mim te
espalmas/ limpa como os primeiros sofrimentos/ vem para adormecer meus
pensamentos/ com essa tua ternura de águas calmas./ Essa mansa canção de gestos
lentos/ mãos que salvaste pássaros e almas/ afaga as minhas mãos em cujas
palmas/ crescem desejos de estrangulamentos.// E me salva estas mãos de magros
dedos./ mostra-lhes a beleza dos martírios/ na renúncia dos gozos e dos
brinquedos/ e todos vejam quando, enfim desfeitas/ as mãos do poeta rebentando
em lírios/ lírios, carícias que não foram feitas".
Para mim, é essa ânsia de estrangulamentos
que logo ditaria coisas como "Introduzo na poesia/ a palavra diarréia/ Não
pela palavra fria/ mas pelo que ela semeia". Ou: "Onde está a poesia?
indaga-se/ em toda parte./ E a poesia/ vai à esquina comprar jornal". Ou:
"A poesia/ Quando chega/ Não respeita nada". Ou: "Eu faço o
poema duro/ o poema-murro/ sujo/ como a miséria brasileira". Ou: "Não
quero a poesia, o capricho/ do poema: quero/ reaver a manhã que virou
lixo". Ou: "Não quero morrer não quero/ Apodrecer no poema".
Ao mesmo tempo, "O poema, senhores,/ não fede/ nem cheira".
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