O Globo
Não bastassem a turbulência político-institucional
provocada pelo presidente da República, o PIB estagnado, a inflação galopante,
a fome à espreita, a variante Delta do coronavírus se multiplicando, o Brasil
se vê acossado por uma crise hídrica que ameaça bem mais que a oferta de eletricidade.
No mesmo dia em que o ministro de Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque,
voltou à TV para apelar aos brasileiros por economia de luz — sem mencionar o
tarifaço que vai até o fim do primeiro quadrimestre do ano eleitoral de 2022 —,
Jair Bolsonaro, em campanha antecipada, cavalgava em Uberlândia (MG), numa cena
mais constrangedora que heroica. A escassez de energia pressiona a inflação,
freia atividade econômica e investimento, empobrece a população. É uma
consequência da falta de água, não a única. E talvez nem seja a mais grave.
A crise hídrica explicitou-se no primeiro trimestre, ainda no período úmido brasileiro, de novembro a abril. O volume de chuvas foi o mais baixo em 91 anos. Os reservatórios das hidrelétricas dos sistemas Sudeste e Centro-Oeste, os mais relevantes, iniciaram a temporada seca nos menores níveis deste século, até piores que no 2001 do racionamento que sepultou o governo de Fernando Henrique Cardoso. O MME determinou a operação plena das termelétricas e anunciou interesse na importação de energia. Em boletins, o Operador Nacional do Sistema (ONS) tem feito alertas recorrentes sobre o provável nível crítico da oferta de energia no mês que vem.
A Agência Nacional de Energia Elétrica
(Aneel) recorreu a reajustes seguidos na bandeira tarifária para, de um lado,
cobrir custos de contratação de geradoras mais caras (e poluentes) e , de
outro, forçar a redução da demanda pelo preço. A bandeira tarifária vermelha
nível 2 saiu de R$ 6,23 em junho para R$ 9,49, a cada cem quilowatts-hora
consumidos, no bimestre julho-agosto. Neste setembro e até abril de 2022,
estará em R$ 14,20. De tão cara, perdeu a cor. Passou a se chamar bandeira de
escassez hídrica.
Desde a crise energética de 2001, a
dependência do Brasil das hidrelétricas diminuiu de mais de 80% para perto de
60%. Ganharam espaço as matrizes eólica, solar, além das térmicas a gás e até a
óleo diesel. Ainda assim, são gravíssimos para a vida da população e para a
atividade econômica o ambiente de incerteza na oferta e a volatilidade nos
preços da eletricidade. O custo de vida sobe direta e indiretamente. O
orçamento das famílias encarece porque a conta de luz fica mais alta, mas
também pelo repasse no valor de produtos e serviços. A Associação dos Grandes
Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace) estimou o
peso da energia em alguns dos itens comuns nos lares brasileiros. Do preço do
leite, abocanha quase metade (48%); na carne e no frango, um terço; no açúcar e
nos materiais de construção, 10%.
Comida, gás de cozinha e energia são itens
que pesam muito nas despesas de quem ganha menos. “A escalada na tarifa de
eletricidade e seu efeito cascata penaliza particularmente os mais pobres, seja
porque os preços sobem, seja porque, se o setor produtivo se retrair, vai ter
mais desemprego”, diz o professor Marcos Freitas, da Coppe-UFRJ. Ex-diretor da
Agência Nacional de Águas (ANA) e ex-superintendente da Aneel, ele confirma que
a crise hídrica “tem potencial para se alastrar para outros usos”.
A falta de segurança energética prejudica
em particular a manufatura. “Empresas desistem de investir; há redução no
processo de industrialização de cadeias inteiras”, alerta Freitas. Agricultura
e transportes já sofrem consequências da falta de chuvas. No fim de agosto, a Hidrovia
Tietê-Paraná parou, porque o nível do rio tornou-se inviável para navegação das
barcaças que escoavam milho, soja, cana-de-açúcar e adubo. A movimentação
passou às rodovias, mais caras e menos produtivas. São necessárias 160 carretas
para transportar o que levam quatro barcaças. Não foi só por apreço à
democracia que o agronegócio divulgou manifesto crítico à conjuntura nacional.
Anteontem, o IBGE divulgou os resultados do
PIB no segundo trimestre (-0,1%); a agropecuária caiu 2,8% em relação a janeiro-março.
Culturas de café (-21%), algodão (-16,6%) e milho (-11,3%) despencaram em
relação ao período abril-junho 2020, auge da primeira onda da pandemia de
Covid-19. As condições climáticas pesaram. Não por acaso, projeções para o
crescimento econômico em 2022 estão sendo revistas. Para dar conta da oferta de
energia, o governo está gastando reservas de água que podem afetar irrigação de
lavouras e até o abastecimento das cidades em áreas localizadas, se as chuvas
não caírem em volume adequado na próxima temporada. Evitar a tragédia demanda
agilidade, competência, capacidade de coordenação, atributos que faltam a um
mandatário que escolheu cavalgar.
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