Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
São reiteradas as tentativas de grupos
minoritários fazer-nos à força um povo homogêneo e até racista, mediante burla
de valores que teoricamente subscrevemos
A decisão que o STF está tomando quanto ao
direito dos nossos indígenas à terra de seus carecimentos culturais e materiais
de sobrevivência decide também o que é ser brasileiro. Se apenas o ser residual
e inautêntico da categoria apátrida dos postiços e homogêneos ou os todos do
nosso nós, nossa autenticidade na diversidade.
Ou, ainda, se haverá para os indígenas a
justiça compensatória a um direito reiteradamente violado pelos brancos, apesar
de decorrente de posse imemorial de terras que são historicamente suas. Ou se,
numa questão só aparentemente territorial, decretará sua extinção ou sua
sobrevivência como protagonistas de uma pátria democrática, alicerçada no
direito à igualdade jurídica na diferença social e cultural que representam.
Não se trata apenas da sobrevivência das populações indígenas. Trata-se da sobrevivência do Brasil como nação multiétnica, pluralista e democrática. São reiteradas as tentativas de grupos minoritários e de interesse econômico, político e racial de fazer-nos à força um povo homogêneo e até racista, mediante a burla sistemática de valores que teoricamente subscrevemos e na prática violamos.
Em seu simplismo ideológico e interesseiro,
regulado pela valorização unilateral do dinheiro e do ganho sem limite, lícito
ou ilícito, esses grupos de interesse tendem a julgar os diferentes pelos valores
dos que dominam, como se fossem únicos. Nas enormes limitações de conhecimento
da gente que manda, a terra da demanda da população indígena xokleng, de Santa
Catarina, em pleito provocado pelo governo do estado, só pode ser medida por
metros quadrados ou hectares, quantitativamente.
Embora as populações indígenas não concebam
a terra por extensão métrica ou pela renda fundiária. Para elas, o valor da
terra é moral, cultural e ritual. Ou, no nosso modo branco de pensar, para as
populações indígenas a terra é sagrada. Não é um bem individualizável nem
alienável. Justamente por isso, as nações indígenas, no Brasil e nas Américas,
têm dado reiteradas provas de que são guardiãs da natureza, porque é ela um
patrimônio vital de todos.
É nisso que, comparados com os indígenas,
os brancos são ignorantes. Numa árvore veem apenas umas tantas tábuas, que
valem uns tantos reais. Veem apenas uma árvore morta porque só assim é
lucrativa. Já o índio, nela vê a vida de todos.
A própria língua tupi tem sobressignificados
em que as palavras definem o ser e o não ser. “Ibirapuera” não é simplesmente a
árvore que morreu, mas a árvore, que foi viva, ainda é não sendo.
As coisas não se esgotam nem na
materialidade nem no calculável. Delas restam realidades invisíveis à ignorância
própria da pobreza intelectual dos que só compreendem o que está reduzido ao
cálculo e ao lucro fácil, nem sempre justo.
Os xokleng, como os outros povos indígenas,
têm direito líquido e certo ao que pode ser interpretado como expressão moderna
de suas terras ancestrais, ainda que residual, como indenização justíssima pelo
genocídio de que foram vítimas.
Por que não podem os índios ter a justa
devolução do que por usurpação se tornou privilégio injusto dos que, com a Lei
de Terras de 1850, vêm se apossando de terras tanto de índios quanto de
sobreviventes da escravidão indígena?
Mesmo num capitalismo medíocre como o
nosso, baseado em flácida competência empresarial, com facilidade o agronegócio
tem dependido de subsídios, incentivos fiscais e compensações.
A Amazônia Legal, que é mais da metade do
território brasileiro, a partir do regime autoritário de 1964 foi ocupada por
empresas largamente beneficiadas por incentivos fiscais, pela renúncia fiscal
desviados de sua destinação ao desenvolvimento econômico com desenvolvimento
social. Muitas vezes para viabilizar empresas em terras usurpadas de populações
indígenas com a cumplicidade do Estado e da própria justiça.
Os xokleng, que esperam do STF o
reconhecimento de seus justíssimos direitos territoriais, são sobreviventes de
uma nação quase extinta. Sua tragédia está analisada na obra do antropólogo
catarinense Sílvio Coelho dos Santos (1938-2008), que foi docente da
Universidade Federal de Santa Catarina.
Essa nação indígena já se distribuiu,
territorialmente, do Rio Grande do Sul ao Paraná. Pode-se estimar, por aí, o
que foi o massacre contra eles perpetrado. A área “limpada”, esvaziada de seres
humanos nativos, foi-o por encomenda. Os chamados “bugreiros”, matadores de
aluguel, de bugres, isto é, descrentes, recebiam pagamento e armas e munição
dos que ficariam com as terras e lhes encomendavam as mortes. Eram pagos por
par de orelhas de índios assassinados.
A terra dos índios não é questão de
propriedade, mas da territorialidade da vida e de seu modo de vida.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "No Limiar da Noite" (Ateliê, 2021).
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