sexta-feira, 3 de setembro de 2021

José de Souza Martins* - Terra indígena

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

São reiteradas as tentativas de grupos minoritários fazer-nos à força um povo homogêneo e até racista, mediante burla de valores que teoricamente subscrevemos

A decisão que o STF está tomando quanto ao direito dos nossos indígenas à terra de seus carecimentos culturais e materiais de sobrevivência decide também o que é ser brasileiro. Se apenas o ser residual e inautêntico da categoria apátrida dos postiços e homogêneos ou os todos do nosso nós, nossa autenticidade na diversidade.

Ou, ainda, se haverá para os indígenas a justiça compensatória a um direito reiteradamente violado pelos brancos, apesar de decorrente de posse imemorial de terras que são historicamente suas. Ou se, numa questão só aparentemente territorial, decretará sua extinção ou sua sobrevivência como protagonistas de uma pátria democrática, alicerçada no direito à igualdade jurídica na diferença social e cultural que representam.

Não se trata apenas da sobrevivência das populações indígenas. Trata-se da sobrevivência do Brasil como nação multiétnica, pluralista e democrática. São reiteradas as tentativas de grupos minoritários e de interesse econômico, político e racial de fazer-nos à força um povo homogêneo e até racista, mediante a burla sistemática de valores que teoricamente subscrevemos e na prática violamos.

Em seu simplismo ideológico e interesseiro, regulado pela valorização unilateral do dinheiro e do ganho sem limite, lícito ou ilícito, esses grupos de interesse tendem a julgar os diferentes pelos valores dos que dominam, como se fossem únicos. Nas enormes limitações de conhecimento da gente que manda, a terra da demanda da população indígena xokleng, de Santa Catarina, em pleito provocado pelo governo do estado, só pode ser medida por metros quadrados ou hectares, quantitativamente.

Embora as populações indígenas não concebam a terra por extensão métrica ou pela renda fundiária. Para elas, o valor da terra é moral, cultural e ritual. Ou, no nosso modo branco de pensar, para as populações indígenas a terra é sagrada. Não é um bem individualizável nem alienável. Justamente por isso, as nações indígenas, no Brasil e nas Américas, têm dado reiteradas provas de que são guardiãs da natureza, porque é ela um patrimônio vital de todos.

É nisso que, comparados com os indígenas, os brancos são ignorantes. Numa árvore veem apenas umas tantas tábuas, que valem uns tantos reais. Veem apenas uma árvore morta porque só assim é lucrativa. Já o índio, nela vê a vida de todos.

A própria língua tupi tem sobressignificados em que as palavras definem o ser e o não ser. “Ibirapuera” não é simplesmente a árvore que morreu, mas a árvore, que foi viva, ainda é não sendo.

As coisas não se esgotam nem na materialidade nem no calculável. Delas restam realidades invisíveis à ignorância própria da pobreza intelectual dos que só compreendem o que está reduzido ao cálculo e ao lucro fácil, nem sempre justo.

Os xokleng, como os outros povos indígenas, têm direito líquido e certo ao que pode ser interpretado como expressão moderna de suas terras ancestrais, ainda que residual, como indenização justíssima pelo genocídio de que foram vítimas.

Por que não podem os índios ter a justa devolução do que por usurpação se tornou privilégio injusto dos que, com a Lei de Terras de 1850, vêm se apossando de terras tanto de índios quanto de sobreviventes da escravidão indígena?

Mesmo num capitalismo medíocre como o nosso, baseado em flácida competência empresarial, com facilidade o agronegócio tem dependido de subsídios, incentivos fiscais e compensações.

A Amazônia Legal, que é mais da metade do território brasileiro, a partir do regime autoritário de 1964 foi ocupada por empresas largamente beneficiadas por incentivos fiscais, pela renúncia fiscal desviados de sua destinação ao desenvolvimento econômico com desenvolvimento social. Muitas vezes para viabilizar empresas em terras usurpadas de populações indígenas com a cumplicidade do Estado e da própria justiça.

Os xokleng, que esperam do STF o reconhecimento de seus justíssimos direitos territoriais, são sobreviventes de uma nação quase extinta. Sua tragédia está analisada na obra do antropólogo catarinense Sílvio Coelho dos Santos (1938-2008), que foi docente da Universidade Federal de Santa Catarina.

Essa nação indígena já se distribuiu, territorialmente, do Rio Grande do Sul ao Paraná. Pode-se estimar, por aí, o que foi o massacre contra eles perpetrado. A área “limpada”, esvaziada de seres humanos nativos, foi-o por encomenda. Os chamados “bugreiros”, matadores de aluguel, de bugres, isto é, descrentes, recebiam pagamento e armas e munição dos que ficariam com as terras e lhes encomendavam as mortes. Eram pagos por par de orelhas de índios assassinados.

A terra dos índios não é questão de propriedade, mas da territorialidade da vida e de seu modo de vida.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "No Limiar da Noite" (Ateliê, 2021).

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