Folha de S. Paulo
'Crime como liberdade de expressão' não
contamina apenas os fascistoides nas redes
Que coisa! Luiz Fux, presidente do Supremo
e do Conselho Nacional de Justiça, fez um pronunciamento nesta quinta alusivo
ao 7 de Setembro. Não se refere apenas aos 199 anos de Independência. É claro
que o repúdio à convocação para o golpe de Estado, que vai ganhar as ruas na
terça, está na raiz de sua fala. E temos de ler e ouvir, então, o óbvio, mas
necessário: “Num
ambiente democrático, manifestações públicas são pacíficas; por sua vez, a
liberdade de expressão não comporta violências e ameaças”.
Devemos, sim, absorver, com atenção, as
lições que nos são ministradas pelo professor Jair Messias Bolsonaro. Não
aprendemos apenas por intermédio do pensamento que nos fascina. O repúdio é um
instrumento poderoso para estabelecer certas balizas. Atração e repulsa são
parceiros inseparáveis, opostos e combinados. É fundamental, também na
política, a definição clara do que não queremos para que possamos estabelecer a
hierarquia das coisas que desejamos.
Bolsonaro não havia ainda completado o quinto mês de mandato, e seus milicianos digitais ganhavam corpo nas ruas, no dia 26 de maio de 2019, com manifestações em 156 cidades, segundo contabilidade publicada pela imprensa. À época, os fascistoides do milenarismo morista-lavajatista estavam juntos —por que não estariam?— no ataque organizado ao Congresso e ao Supremo.
Dois meses antes, a 14 de março, Dias
Toffoli, então presidente do STF, num acerto histórico, já havia aberto, de
ofício, o inquérito
4.781 para apurar a indústria criminosa de ataques ao tribunal. Para
escândalo, diga-se, dos salta-pocinhas do legalismo suicida. Nota de linguagem:
tomo o “legalismo” como a legalidade infectada por agente tóxico, com o
objetivo de destruí-la, assim como o moralismo costuma ser a perversão da moral
em nome da qual ousa falar.
Há dois anos, sem descanso, o presidente da
República planeja —ainda que a seu modo, necessariamente destrambelhado porque
lhe falta uma hierarquia de ideias e procedimentos até para organizar um golpe—
o assalto
ao Estado de Direito. Preocupam-me, claro!, os ataques permanentes à
legalidade democrática, em razão de seu poder corrosivo, mas é ainda mais
alarmante a impotência das instituições para dar resposta rápida aos
criminosos.
Não fosse o inquérito 4.781, o país não
teria, a esta altura, uma barreira de contenção ao golpista fanático. E notem
que, ainda assim, para que o mandatário venha a ser punido pela Justiça comum
—ele está protegido da denúncia por crime de responsabilidade pelo Orçamento
secreto administrado por Arthur Lira—, é preciso o concurso da
Procuradoria-Geral da República.
Não por acaso, note-se à margem, ao sancionar
a lei de proteção ao Estado democrático, Bolsonaro vetou a possibilidade de
ação privada subsidiária, movida por partido político, no caso de o Ministério
Público se omitir diante de crimes contra a ordem democrática. Sim, ele é
tosco. Mas está cercado de gente que sabe muito bem o que quer. A essa gente
interessa uma democracia sem instrumentos para se defender.
A imprensa tem noticiado desde sempre os
ataques impunes de Bolsonaro à legalidade democrática. Nos últimos três ou
quatro meses, no entanto, a possibilidade de um golpe de Estado passou a ser
uma pauta constante. Em menos de três anos de mandato, ainda que sem método, o presidente
da República conseguiu fragilizar quase 40 anos de conquistas democráticas.
Parte
considerável do capital acordou para os riscos e ensaia o desembarque, dada
a gravidade do quadro, inclusive econômico. O movimento é ainda acanhado. O
Estado, independentemente de quem o comande, é forte o bastante no país para
intimidar o empresariado. Eis aqui uma agenda que deveria nos ocupar, de olho
no futuro. Em vez disso, estamos debatendo a captura da ordem legal por
arruaceiros e golpistas.
Infelizmente, o “crime como liberdade de
expressão” e a “liberdade de expressão como crime” não contaminam apenas
fascistoides do bueiro do capeta em que se transformaram as redes sociais. Há
certa dificuldade, mesmo em inteligências arejadas, para entender que as ideias
têm consequências. Que seus partidários as vocalizem. Mas que arquem com as...
consequências.
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