Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
O teor autoritário das manifestações
previstas para o Sete de Setembro preocupa, mas o pior é a agenda que Bolsonaro
defende e quer levar adiante
O Dia da Independência do país, em vez de ser
uma data comemorativa, virou um grande ponto de tensão. A pergunta que não quer
calar é: qual será o sentido do movimento
bolsonarista no Sete de Setembro? É possível antever três
significados neste evento. O primeiro é tentar emparedar as instituições que estão
freando o autoritarismo de Bolsonaro e dizer que, se preciso for, um golpe pode ser dado. O
segundo é mostrar que o presidente tem uma faixa de apoio social que evita
o impeachment e
já o coloca no segundo
turno. Mas há um terceiro aspecto que poucos têm
discutido. Trata-se de definir, claramente, a agenda central do presidente Bolsonaro
para o resto do mandato e para caso ele continue governando o Brasil, pelo voto
ou não.
O que mais tem causado apreensão em vários setores da sociedade é o caráter antidemocrático que orienta o bolsonarismo. Vários manifestos surgiram no último mês, artigos foram escritos na imprensa denunciando posturas golpistas, lideranças congressuais, inclusive governistas, estão muito preocupadas e, ademais, também há a possibilidade de manifestações de rua contrárias ao presidente entrarem em choque com o séquito de fiéis bolsonaristas.
Desse modo, há dois temores aqui. Um é o da
adoção de um rumo efetivamente autoritário por Bolsonaro, que disse haver
apenas três saídas para ele: a morte, a prisão ou a vitória política. Como as
duas primeiras são extremamente traumáticas para os seus apoiadores, cria-se um
clima de independência ou morte para o Sete de Setembro que não tem a ver com o
suposto grito do Ipiranga dado por Dom Pedro I. Disso surge o segundo temor, o
da violência política, seja para o dia do evento, seja como algo que seria
inoculado no cotidiano do país daqui para diante. Ter como meta a mobilização
de policiais militares para uma manifestação política traz preocupações sobre o
dia seguinte dessa mobilização.
O sentido autoritário dessa manifestação em
defesa de Bolsonaro gera uma reação que antecipa de tal modo o golpismo que já
aumenta o custo desse tipo de aventura. Parece ser um efeito positivo e inverso
ao esperado pelo bolsonarismo, uma vez que setores que estavam calados frente
ao ataque às instituições começaram a reagir, gerando impactos que podem, ao
fim e ao cabo, prejudicar a popularidade presidencial. Afinal, se a reação
democrática produzir piora no quadro econômico, dificuldade de aprovação de
legislações no Congresso Nacional e um amedrontamento da classe média,
Bolsonaro terá um ano eleitoral muito complicado, com perdas de apoio por todos
os lados.
Mas um velho colega sempre me disse que
deixar um “cachorro louco”, para usar uma gíria popular antiga, sem qualquer
saída também é um risco, exatamente porque ele não mensura seus atos pela mesma
régua dos outros participantes do jogo social. Bolsonaro tem desde o início do
governo dois planos para seu projeto político: o eleitoral e o do golpe
institucional. Sua estratégia é manter-se nos dois planos, porém, quanto mais
perde a perspectiva de manter-se no poder, mais ele mobiliza seus aliados em
prol de alguma saída em defesa do bolsonarismo contra o sistema político e
econômico que o persegue, como repetem suas redes sociais.
Mobilizar-se contra as instituições e
namorar possibilidades autoritárias não quer dizer que isso ocorrerá. O custo
de uma aventura como essa é altíssimo e pode levar o país a uma crise ainda
mais prolongada. Os setores mais influentes do país sabem disso e estão
avisando que atuarão fortemente contra qualquer quebra do regime democrático.
Entretanto, o bolsonarismo pode não viabilizar um golpe de fato, e sim gerar
confusão, violência e formas de deslegitimação política ao estilo Trump.
Foi por essa via que o ex-presidente
americano manteve apoiadores fiéis e fanáticos em bom número. Tal caminho
também evitou um ataque maior ao trumpismo logo após a eleição numa linha que
levaria seu líder e assessores mais próximos à prisão. E, por fim, a chantagem
autoritária da extrema direita americana consolidou um novo conservadorismo que
pode ir além do seu mentor político.
Sem negar que o bolsonarismo concebeu a
mobilização do Sete de Setembro como uma ameaça autoritária contra as
instituições democráticas, é possível igualmente encontrar outro sentido nesta
empreitada, embora não completamente antagônico ao primeiro. Aparentemente,
Bolsonaro aposta cada vez mais na busca de um apoio eleitoral mais seguro e
minoritário para chegar ao segundo turno da eleição presidencial. Seja pela
deterioração das condições econômicas, sociais e políticas do país, seja pelo
próprio estilo extremista do presidente da República, o fato é que a aposta na
reeleição passa principalmente pela manutenção do apoio de 20% a 25% do eleitorado
nas hostes bolsonaristas.
Mesmo tendo buscado o apoio do Centrão, o
que ganha mais espaço no discurso presidencial é a aposta em temáticas radicais
e na lógica do “tudo ou nada” frente ao sistema. As pesquisas de opinião têm
mostrado, por ora, que uma parte dos eleitores do país, que vai de 15% a 25%,
acredita fortemente no presidente, comungando de sua visão de mundo ressentida
frente à contemporaneidade e disposta a defender sua liderança máxima, chamada
de mito. Em que ponto dessa escala matemática de apoio Bolsonaro estará em 2022
é por enquanto uma incógnita.
Não é absurdo apostar, contudo, que o
ideário extremista-conservador temperado por uma visão conspiratória consiga
alcançar pelo menos 20% do eleitorado, um patamar que pode garantir a segunda
vaga para Bolsonaro no turno final caso não se viabilize uma terceira via. Uma
visão otimista pode ainda imaginar a conquista de uma fatia um pouco maior, de
25%, o que garantiria maiores chances ao predomínio da lógica polarizada na
corrida pelo Palácio do Planalto.
O segundo sentido da mobilização do Sete de
setembro não se descola por completo do caminho autoritário do bolsonarismo. Na
verdade, há aqui a combinação de duas estratégias de se manter no poder, uma
golpista e outra eleitoral, ambas preocupadas sim em garantir o futuro imediato
do presidente Bolsonaro e de sua família - daí ele citar sempre a questão da
prisão -, mas voltada também para um prazo mais longo, especialmente a montagem
de uma agenda pública estritamente bolsonarista.
E é exatamente na solidificação da agenda
de temas relevantes do bolsonarismo que está o terceiro sentido da manifestação
de Sete de Setembro. Trata-se de um aspecto central desse processo político,
mas com pouco debate no jogo político e na mídia porque o medo maior do
golpismo tem nublado a discussão. No fundo, o que está em jogo é o seguinte: o
projeto político de Bolsonaro são as questões que vão comandar os corações e
mentes dos que estarão em Brasília e São Paulo defendendo o seu líder maior.
A consolidação da agenda do bolsonarismo é
o maior legado desse movimento que desagua nas manifestações no Dia da
Independência. Esqueça boa parte do que Bolsonaro dizia defender em 2018. Foi
construída uma pauta conservadora norteada por temas diferentes dos que guiaram
a Constituição de 1988 e os governos do PSDB e do PT. Entre eles, destacam-se,
primeiro, o uso irrestrito de armas pelos cidadãos como forma de garantir a
liberdade, embora seu efeito possa ser criar milícias e banditismo em todas as
partes do país. Em segundo lugar, defende-se uma desregulamentação econômica
tão ampla que não só flexibiliza os direitos do trabalhador como ainda permite
- ou até incentiva - depredar os recursos naturais pelo garimpo ilegal e pela
expansão de atividades agropecuárias. Terceiro, grupos sociais como negros,
indígenas, mulheres e outros neste mesmo campo identitário serão mais do que
ignorados: serão fortemente rechaçados, assim como temáticas da
contemporaneidade como a questão ambiental. Há aqui um forte sentimento
moralista, anticientífico e passadista, de saudade de um mundo comandado pela
família patriarcal dos colonizadores, com toda a liberdade para empreenderem,
como os bandeirantes.
A visão institucional da democracia
liberal, para nem falar das vertentes democráticas voltadas à participação
social nas políticas públicas, não está na agenda bolsonarista. É por essa
linha que o bolsonarismo vai trilhar daqui para diante, para além da briga
momentânea com o STF. Do ponto de vista econômico, o que importa é ter renda
para os grupos apoiadores, não importa o método de ação, liberal ou
intervencionista, contanto que garanta, por exemplo, um preço menor do diesel
para os caminhoneiros. Haverá concessões aos aliados de ocasião, como ao
Centrão agora, e recursos distribuídos de helicóptero aos mais pobres, mas não
se espere um ideário centrado no combate à desigualdade e no desenvolvimento de
políticas públicas. Os bolsonaristas não gostam do SUS, das escolas e
universidades, do Ibama e todas as instituições públicas que reduziram a
barbárie brasileira nos últimos 30 anos.
O teor autoritário e a força eleitoral
remanescente do bolsonarismo certamente devem preocupar nas manifestações de
terça-feira. Mas o mais preocupante para a sociedade brasileira é a verdadeira
agenda que Bolsonaro defende e que pretende levar adiante nos próximos anos. Se
seguirmos essa pauta, comemoramos a Independência no ano que vem sem um projeto
de futuro para o país.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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