sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Fernando Abrucio* - O sentido do sete de Setembro bolsonarista

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

O teor autoritário das manifestações previstas para o Sete de Setembro preocupa, mas o pior é a agenda que Bolsonaro defende e quer levar adiante

Dia da Independência do país, em vez de ser uma data comemorativa, virou um grande ponto de tensão. A pergunta que não quer calar é: qual será o sentido do movimento bolsonarista no Sete de Setembro? É possível antever três significados neste evento. O primeiro é tentar emparedar as instituições que estão freando o autoritarismo de Bolsonaro e dizer que, se preciso for, um golpe pode ser dado. O segundo é mostrar que o presidente tem uma faixa de apoio social que evita o impeachment e já o coloca no segundo turno. Mas há um terceiro aspecto que poucos têm discutido. Trata-se de definir, claramente, a agenda central do presidente Bolsonaro para o resto do mandato e para caso ele continue governando o Brasil, pelo voto ou não.

O que mais tem causado apreensão em vários setores da sociedade é o caráter antidemocrático que orienta o bolsonarismo. Vários manifestos surgiram no último mês, artigos foram escritos na imprensa denunciando posturas golpistas, lideranças congressuais, inclusive governistas, estão muito preocupadas e, ademais, também há a possibilidade de manifestações de rua contrárias ao presidente entrarem em choque com o séquito de fiéis bolsonaristas.

Desse modo, há dois temores aqui. Um é o da adoção de um rumo efetivamente autoritário por Bolsonaro, que disse haver apenas três saídas para ele: a morte, a prisão ou a vitória política. Como as duas primeiras são extremamente traumáticas para os seus apoiadores, cria-se um clima de independência ou morte para o Sete de Setembro que não tem a ver com o suposto grito do Ipiranga dado por Dom Pedro I. Disso surge o segundo temor, o da violência política, seja para o dia do evento, seja como algo que seria inoculado no cotidiano do país daqui para diante. Ter como meta a mobilização de policiais militares para uma manifestação política traz preocupações sobre o dia seguinte dessa mobilização.

O sentido autoritário dessa manifestação em defesa de Bolsonaro gera uma reação que antecipa de tal modo o golpismo que já aumenta o custo desse tipo de aventura. Parece ser um efeito positivo e inverso ao esperado pelo bolsonarismo, uma vez que setores que estavam calados frente ao ataque às instituições começaram a reagir, gerando impactos que podem, ao fim e ao cabo, prejudicar a popularidade presidencial. Afinal, se a reação democrática produzir piora no quadro econômico, dificuldade de aprovação de legislações no Congresso Nacional e um amedrontamento da classe média, Bolsonaro terá um ano eleitoral muito complicado, com perdas de apoio por todos os lados.

Mas um velho colega sempre me disse que deixar um “cachorro louco”, para usar uma gíria popular antiga, sem qualquer saída também é um risco, exatamente porque ele não mensura seus atos pela mesma régua dos outros participantes do jogo social. Bolsonaro tem desde o início do governo dois planos para seu projeto político: o eleitoral e o do golpe institucional. Sua estratégia é manter-se nos dois planos, porém, quanto mais perde a perspectiva de manter-se no poder, mais ele mobiliza seus aliados em prol de alguma saída em defesa do bolsonarismo contra o sistema político e econômico que o persegue, como repetem suas redes sociais.

Mobilizar-se contra as instituições e namorar possibilidades autoritárias não quer dizer que isso ocorrerá. O custo de uma aventura como essa é altíssimo e pode levar o país a uma crise ainda mais prolongada. Os setores mais influentes do país sabem disso e estão avisando que atuarão fortemente contra qualquer quebra do regime democrático. Entretanto, o bolsonarismo pode não viabilizar um golpe de fato, e sim gerar confusão, violência e formas de deslegitimação política ao estilo Trump.

Foi por essa via que o ex-presidente americano manteve apoiadores fiéis e fanáticos em bom número. Tal caminho também evitou um ataque maior ao trumpismo logo após a eleição numa linha que levaria seu líder e assessores mais próximos à prisão. E, por fim, a chantagem autoritária da extrema direita americana consolidou um novo conservadorismo que pode ir além do seu mentor político.

Sem negar que o bolsonarismo concebeu a mobilização do Sete de Setembro como uma ameaça autoritária contra as instituições democráticas, é possível igualmente encontrar outro sentido nesta empreitada, embora não completamente antagônico ao primeiro. Aparentemente, Bolsonaro aposta cada vez mais na busca de um apoio eleitoral mais seguro e minoritário para chegar ao segundo turno da eleição presidencial. Seja pela deterioração das condições econômicas, sociais e políticas do país, seja pelo próprio estilo extremista do presidente da República, o fato é que a aposta na reeleição passa principalmente pela manutenção do apoio de 20% a 25% do eleitorado nas hostes bolsonaristas.

Mesmo tendo buscado o apoio do Centrão, o que ganha mais espaço no discurso presidencial é a aposta em temáticas radicais e na lógica do “tudo ou nada” frente ao sistema. As pesquisas de opinião têm mostrado, por ora, que uma parte dos eleitores do país, que vai de 15% a 25%, acredita fortemente no presidente, comungando de sua visão de mundo ressentida frente à contemporaneidade e disposta a defender sua liderança máxima, chamada de mito. Em que ponto dessa escala matemática de apoio Bolsonaro estará em 2022 é por enquanto uma incógnita.

Não é absurdo apostar, contudo, que o ideário extremista-conservador temperado por uma visão conspiratória consiga alcançar pelo menos 20% do eleitorado, um patamar que pode garantir a segunda vaga para Bolsonaro no turno final caso não se viabilize uma terceira via. Uma visão otimista pode ainda imaginar a conquista de uma fatia um pouco maior, de 25%, o que garantiria maiores chances ao predomínio da lógica polarizada na corrida pelo Palácio do Planalto.

O segundo sentido da mobilização do Sete de setembro não se descola por completo do caminho autoritário do bolsonarismo. Na verdade, há aqui a combinação de duas estratégias de se manter no poder, uma golpista e outra eleitoral, ambas preocupadas sim em garantir o futuro imediato do presidente Bolsonaro e de sua família - daí ele citar sempre a questão da prisão -, mas voltada também para um prazo mais longo, especialmente a montagem de uma agenda pública estritamente bolsonarista.

E é exatamente na solidificação da agenda de temas relevantes do bolsonarismo que está o terceiro sentido da manifestação de Sete de Setembro. Trata-se de um aspecto central desse processo político, mas com pouco debate no jogo político e na mídia porque o medo maior do golpismo tem nublado a discussão. No fundo, o que está em jogo é o seguinte: o projeto político de Bolsonaro são as questões que vão comandar os corações e mentes dos que estarão em Brasília e São Paulo defendendo o seu líder maior.

A consolidação da agenda do bolsonarismo é o maior legado desse movimento que desagua nas manifestações no Dia da Independência. Esqueça boa parte do que Bolsonaro dizia defender em 2018. Foi construída uma pauta conservadora norteada por temas diferentes dos que guiaram a Constituição de 1988 e os governos do PSDB e do PT. Entre eles, destacam-se, primeiro, o uso irrestrito de armas pelos cidadãos como forma de garantir a liberdade, embora seu efeito possa ser criar milícias e banditismo em todas as partes do país. Em segundo lugar, defende-se uma desregulamentação econômica tão ampla que não só flexibiliza os direitos do trabalhador como ainda permite - ou até incentiva - depredar os recursos naturais pelo garimpo ilegal e pela expansão de atividades agropecuárias. Terceiro, grupos sociais como negros, indígenas, mulheres e outros neste mesmo campo identitário serão mais do que ignorados: serão fortemente rechaçados, assim como temáticas da contemporaneidade como a questão ambiental. Há aqui um forte sentimento moralista, anticientífico e passadista, de saudade de um mundo comandado pela família patriarcal dos colonizadores, com toda a liberdade para empreenderem, como os bandeirantes.

A visão institucional da democracia liberal, para nem falar das vertentes democráticas voltadas à participação social nas políticas públicas, não está na agenda bolsonarista. É por essa linha que o bolsonarismo vai trilhar daqui para diante, para além da briga momentânea com o STF. Do ponto de vista econômico, o que importa é ter renda para os grupos apoiadores, não importa o método de ação, liberal ou intervencionista, contanto que garanta, por exemplo, um preço menor do diesel para os caminhoneiros. Haverá concessões aos aliados de ocasião, como ao Centrão agora, e recursos distribuídos de helicóptero aos mais pobres, mas não se espere um ideário centrado no combate à desigualdade e no desenvolvimento de políticas públicas. Os bolsonaristas não gostam do SUS, das escolas e universidades, do Ibama e todas as instituições públicas que reduziram a barbárie brasileira nos últimos 30 anos.

O teor autoritário e a força eleitoral remanescente do bolsonarismo certamente devem preocupar nas manifestações de terça-feira. Mas o mais preocupante para a sociedade brasileira é a verdadeira agenda que Bolsonaro defende e que pretende levar adiante nos próximos anos. Se seguirmos essa pauta, comemoramos a Independência no ano que vem sem um projeto de futuro para o país.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

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