Folha de S. Paulo
Ter um direito significa ser beneficiário
de obrigações por parte de outras pessoas
Ter um direito significa ser beneficiário
de obrigações por parte de outras pessoas, na sintética definição de Jeremy
Bentham. Nesse sentido, direitos e obrigações são elementos correlatos e
indissociáveis. Embora os direitos tenham primazia sobre as obrigações, a sua
efetivação depende, na prática, do cumprimento pelos demais de suas obrigações.
A partir do momento em que assumimos que todas as pessoas têm o mesmo valor moral e, portanto, iguais direitos, passamos a ter obrigações em relação a elas, da mesma forma que elas passam a ter deveres correlatos aos nossos direitos. Assim, se reconhecemos a existência de um direito à vida, automaticamente todos os membros da comunidade estão, reciprocamente, obrigados a respeitar a vida alheia.
Essa reciprocidade simétrica, inerente à
gramática dos direitos em sociedades democráticas, impõe uma árdua e continua
tarefa de harmonizar o convívio entre os direitos e obrigações de todos os
membros da comunidade. É por isso que filósofos e juristas insistem que, salvo
em raríssimas exceções, não há que se falar em direitos absolutos. O que pode
haver, em algumas circunstâncias, é a necessidade de condicionar um determinado
direito para que um outro direito não seja eliminado. Surge assim uma
prevalência condicionada, em que um direito cede parte de seu espaço para que
outro direito sobreviva.
Numa pandemia como a que estamos vivendo,
que já ceifou mais de 5 milhões de vidas, justifica-se que a proteção ao
direito à vida e à saúde da população imponha restrições ou condicionamentos ao
exercício da liberdade individual. Daí decorre a legitimidade das medidas
restritivas de direitos determinada pela lei 13.979/20, que autoriza a
imposição de obrigação do uso de máscara, do distanciamento social e mesmo a
exigência de vacinação.
Isso não significa, no entanto, que o
Estado possa, mediante coerção, obrigar uma pessoa a ser vacinada. Afinal, essa
pessoa tem o direito ao próprio corpo e o Estado não pode invadi-lo, quando
houver uma opção menos gravosa ao direito a ser restringido. A forma menos
gravosa de conciliação é permitir a instituição de restrições às liberdades
daqueles que se negam a vacinar por razões subjetivas ou ideológicas, colocando
arbitrariamente em risco a vida e saúde do restante da população.
Nesse sentido, a Constituição brasileira,
por força do artigo 196, assim como a legislação trabalhista brasileira, não só
autorizam, como criam obrigação
ao Estado e ao empregador de zelar pela saúde da população e do empregado.
Logo, pode o empregador advertir, criar incentivos e restrições e, em casos
específicos, deixar de contratar ou mesmo demitir trabalhadores (artigo 482 da
CLT) que, ao se insurgirem contra políticas ou regras de saúde pública,
colocarem em risco a vida ou a integridade de outras pessoas.
Ao proibir, por mera portaria, a demissão
ou a não contratação de empregado que se negue a receber a vacina contra a
Covid-19, o ministro do Trabalho não apenas extrapolou suas competências, como
afrontou materialmente a lei e a Constituição. Reforça, assim, a sistemática
estratégia do governo Bolsonaro de fraudar a Constituição por meio de atos
infralegais. Mais do que isso, explicita a ideologia liberticida, dominante na
extrema direita brasileira, que não reconhece a lei ou o direito do outro
condicionantes legítimas das condutas sociais. É hora de o Supremo, mais uma
vez, colocar limite a essa ideologia egomaníaca e destrutiva.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em
direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário