O Globo
Novo programa
torna o gasto social refém do governo de ocasião e da distribuição de emendas
no Congresso
Há quase 20 anos, o país passava por um
momento histórico. Os dois mais transformadores presidentes da Nova República,
FHC e Lula, encontravam-se no Parlatório no Palácio do Planalto. Era a única
transição democrática de um cabeça de chapa eleito para um opositor em décadas.
Quase todos percebiam a grandeza do
momento. Nossa jovem democracia parecia ter atingido a maturidade da transição
pacífica do poder entre partidos rivais.
Havia motivos reais para acreditar nisso.
Lula, que alguns anos antes tinha feito campanha contrária ao Plano Real, se
reinventou: escreveu uma Carta ao Povo Brasileiro em que prometia manter os
programas bem-sucedidos do governo FHC.
Seu ministro da Fazenda, Antonio Palocci,
rasgava elogios ao seu predecessor, Pedro Malan. De quebra, Lula nomearia um
deputado tucano de Goiás, Henrique Meirelles, para seu Banco Central.
O governo Lula também abraçaria o tripé
macroeconômico: metas de inflação; câmbio flutuante; e superávit primário. Se
essas políticas eram “neoliberais”, como diziam alguns economistas críticos
ligados ao PT, Lula foi campeão de neoliberalismo.
Em resumo, apesar de haver transição, não houve ruptura. Depois de uma sequência de crises de hiperinflação, o Brasil parecia seguir, de forma mais ou menos linear, em direção ao progresso: melhorando aquilo que tinha dado certo e reformando o que estava ruim. Com menos espaço para dogmatismos ideológicos.
Uma das áreas mais improváveis de continuidade foi a política social. O governo Lula decidiu unificar e ampliar os diversos mecanismos de transferência focalizada nos mais pobres, como o Bolsa Escola, Vale-Gás e o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), bem como levar adiante a ideia já existente de criar um Cadastro Único para os benefícios sociais do governo. Nascia o Bolsa Família.
Ele não era a escolha mais natural para o
governo petista. A ênfase em transferências diretas e focalizadas era obsessão
de diversos economistas ligados à PUC e FGV, ambas no Rio. E era alvo de
críticas de economistas ligados à esquerda. Maria da Conceição Tavares chegou a
chamar Marcos Lisboa, então secretário de Política Econômica de Lula, de “débil
mental” e “semianalfabeto”, quando ele defendeu a priorização de políticas
focalizadas como o Bolsa Família.
Dentro de uma lógica peculiar, a crítica
tinha alguma razão de ser. O Progresa/Oportunidades, primo mexicano do Bolsa
Família, também foi criticado pela esquerda de lá por ser “neoliberal”. Afinal,
os programas fazem uma inclusão via mercado.
No lugar de escolher o que as pessoas devem
consumir, o Bolsa Família fez dos pobres consumidores. Os recursos são
públicos, mas a escolha é privatizada — e foram os pobres que se beneficiaram
dessa privatização.
Essa continuidade improvável resultou num
dos programas sociais mais eficientes do mundo. Em seu ápice, o Bolsa Família
melhorou diretamente a vida de 14 milhões de famílias (mais de 50 milhões de
pessoas) custando só 0,5% do PIB. É impressionante. E seus benefícios
econômicos vão além do auxílio social direto.
Joana Naritomi, professora brasileira da
London School of Economics, demonstrou junto com coautores que a expansão do
Bolsa Família em determinados municípios causou uma expansão no emprego formal.
Ou seja, em termos líquidos, dar o pão ajuda com que haja mais gente disposta a
pescar.
Se Maria da Conceição Tavares via
“neoliberalismo” na linha contínua entre FHC-2 e Lula-1, Paulo Guedes vê no
mesmo fenômeno décadas de “social-democracia”. Ambos viam o período com desdém.
Eu, ao contrário deles, vejo nele um Brasil
que deu certo. Que superou o dogma e as rivalidades em nome do pragmatismo.
A institucionalização do Bolsa Família
mostrou que o gasto social, quando direto e focalizado, é eficiente e cabe
tranquilamente no Orçamento. É por isso que a proposta de refundação do Bolsa
Família, hoje levada a toque de caixa pelo governo Bolsonaro, é tão temerária.
Para além de todos os conformes eleitoreiros
e casuísticos da proposta, ela torna o gasto social refém do governo de ocasião
e da distribuição de emendas no Parlamento. Se antes vivíamos em um país de
aparente avanço linear, vivemos hoje na realidade da ruptura errática.
Infelizmente, como diz um técnico de futebol, é muito mais fácil destruir do que construir. Se o Senado avançar com a desinstitucionalização do Bolsa Família, é possível que se tome muito tempo para recolocar pedra sobre pedra.
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