sábado, 6 de novembro de 2021

Fernando Schüler* - A democracia de tutela

Revista Veja 

A imensa maioria julga a partir de sua predileção política. Não é assim que se faz uma democracia baseada em direitos

Confesso que nunca li uma linha sequer do Allan dos Santos e, antes da notícia de sua prisão, tinha uma vaga ideia de sua pregação, alinhada a Bolsonaro e a nossa estridente nova direita. Criei o hábito de não perder tempo com radicais, à direita ou à esquerda. Se o sujeito quer defender a ditadura de Stroessner ou Fidel, que o faça. Há muitos por aí, não é mesmo? Se acha que o Brasil estaria melhor sob uma monarquia absolutista, sob um partido único, como na China, ou pensa isto ou aquilo sobre os costumes, vejo como um direito de cada um. O que me incomoda é viver em um país em que alguém é preso, sem contraditório ou o devido processo, porque uma autoridade pública, genial que seja, acha que suas opiniões representam uma “ameaça à democracia”.

Posso estar errado. Vejo muita gente por aí satisfeita com a “tutela de opinião”, feita pelo Estado, ou a “curadoria”, na expressão utilizada por um ministro de nossa Suprema Corte. Vejo muita gente dizendo que é preciso separar o joio do trigo. Que mentira não é opinião, retórica contra a democracia não é opinião, distorção de fatos não é opinião, valendo o mesmo para preconceitos ou ofensas a certas autoridades. E que tudo isso deveria ficar a cargo de um grande tribunal julgar, quem sabe sob a chancela de algum segmento hegemônico na opinião pública.

Foi o que se viu na recente desmonetização das contas de blogueiros que defendiam o voto impresso e foram punidos por não dizerem a “verdade”, como se lia em uma sentença do TSE. Viu-se o mesmo na cassação do deputado Fernando Francischini, por uma live contendo “informações falsas sobre a urna eletrônica”. Nesse caso, reinventamos a Constituição. Parlamentares passam a ser imunes por suas “palavras e opiniões”, como reza seu artigo 53, apenas para dizer aquilo que se prove, ato seguinte, verdadeiro. Me pergunto se o desejo do constituinte, quando criou o instituto da imunidade parlamentar, não era precisamente que nossos representantes agissem por convicção e sem medo do poder. Arriscando a errar, por vezes, para que pudessem acertar, em tantas outras.

A decisão sobre a prisão de Allan dos Santos será lida, algum dia, como testemunho histórico de nosso “Estado tutor”. Entre os delitos mencionados, lê-se a divulgação de notícias falsas ou “apresentadas de forma parcial”; o incentivo à “polarização entre os poderes”; o “discurso de ódio” e a “animosidade” na sociedade brasileira; a pregação de “ideias antidemocráticas”; “ataques contra agentes políticos” e mensagens “apelativas”, para ganhar dinheiro; o uso da “retórica amigo-inimigo” (referência a Carl Schmitt?); e, por fim, a desfeita de “apontar o dedo médio” para o edifício do STF.

Abundância de grandes palavras e escassez de fatos com alguma “objetividade”, palavrinha que parece irritar tanta gente. Na guerra de todos contra todos em que se transformou nossa democracia digital, é curioso como mesmo uma pergunta elementar como “por que o sujeito foi preso?” soa inútil. A imensa maioria julga a partir de sua predileção política. Não é assim que se faz uma democracia baseada em direitos.

Não me surpreendo com essas coisas. Sempre achei a paixão política uma força muito mais poderosa do que a lealdade aos princípios abstratos do liberalismo democrático. O dito “discordo do que você diz, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-­lo” não passa de uma quimera aqui na selva. Liberdade de expressão se tornou um tema quase impossível em meio às guerras culturais do nosso tempo. Não é simples aceitar que devemos tolerar ideias “bárbaras”, que não merecem “proteção alguma”, como li, dias atrás, em uma pitoresca interpretação do paradoxo da tolerância, de Popper, segundo a qual não devemos aceitar as ideias que nós, a partir do que nos der na telha, definimos como “intolerantes”.

A democracia de tutela é uma variante do binômio “democracia e relativização de direitos”, tão próprio dos atuais iliberalismos, à esquerda ou à direita. No caso brasileiro, são tipos da “nova direita” que vão indo para o xilindró. Mas os ventos podem mudar. Acho curioso que as pessoas que hoje vibram com o estremecimento do direito dos outros nunca imaginam que um dia o mesmo possa acontecer com seus próprios direitos.

É possível que a democracia de tutela seja nossa opção histórica. Nunca alimentei muitas ilusões de que um liberalismo robusto, fundado em direitos individuais, com algo parecido à Primeira Emenda americana, fincaria raízes por aqui. Temo apenas pelo que aprendi com as lições da história. Com John Milton aprendi que ninguém, nem os melhores juízes, é infalível; com Madison, que não cabe ao Estado ditar a verdade, que fatos e opiniões frequentemente andam misturados, e que é preciso tolerância, pois “o excesso faz parte do uso de qualquer coisa”. Com John Stuart Mill aprendi que o erro nos presta o favor de colocar a verdade continuamente em teste, não permitindo que ela se transforme em sua caricatura: o dogma.

E diria que todos aprendemos com Voltaire. Acho graça quando escuto que a Justiça pode se guiar pelo que “todo mundo sabe” ou em juízos de ofício. Num tempo muito mais violento que o nosso, foi contra isso que Voltaire se levantou ao escrever seu Tratado sobre a Tolerância, em 1762. O estopim veio com o martírio de Jean Calas, um pai de família de Toulouse acusado de matar o próprio filho por motivos de religião. Acusado pela multidão fanatizada, foi martirizado na roda. Sem provas, sem contraditório, com base em um decreto ilegal, por um punhado de juízes que tinham o hábito de “falar à cidade com arrebatamento”.

Seu Tratado se tornou um libelo contra o fanatismo e a intolerância, inspirando gerações de intelectuais a perseguir princípios de justiça, em vez da paixão política. E a não silenciar diante de eventuais maiorias. Em um mundo diverso, ele ensina, a tolerância é o caminho possível para a pacificação da sociedade. “A Alemanha seria um deserto de ossadas de católicos, evangélicos e anabatistas”, diz, “se a paz de Vestfália não tivesse garantido a liberdade de consciência.”

Para combater o sectarismo, ele sugere um caminho muito diferente do nosso: em vez da coerção, a liberdade e a multiplicidade de ideias. “Quanto mais seitas”, diz, “menos cada uma delas será perigosa. A multiplicidade as enfraquece.” É a perseguição que mantém seu vigor, e é a força das ideias que vai superar o fanatismo. “O melhor método de diminuir o número dos maníacos”, ele diz, “é o de deixar essa doença do espírito sob o controle da razão.” Voltaire diz algo caro à tradição moderna da liberdade de expressão: a melhor forma de combater más ideias é com ideias melhores. Ideias que são, boas ou más, prerrogativas dos cidadãos, e não do Estado.

Eis o espírito do iluminismo. Nossos tribunais, que hoje se dedicam a calar as “más ideias” banindo ou mandando prender, entram em um jogo que deveriam apenas arbitrar, com serenidade. Sua melhor contribuição seria ajudar o país a consolidar uma democracia inclusiva, pautada pela liberdade e pela tolerância. Estou longe de achar que seja um caminho fácil ou mesmo provável. O horizonte que vejo à frente é o de uma democracia de tutela. É por isso que tirei o pó de velhos livros e fui reler Voltaire, por estes dias tristes.

*Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2021, edição nº 2763

 

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