Revista Veja
A imensa maioria julga a partir de sua predileção política. Não é assim que se faz uma democracia baseada em direitos
Confesso que nunca li uma linha sequer do
Allan dos Santos e, antes da notícia de sua prisão, tinha uma vaga ideia de sua
pregação, alinhada a Bolsonaro e a nossa estridente nova direita. Criei o
hábito de não perder tempo com radicais, à direita ou à esquerda. Se o sujeito
quer defender a ditadura de Stroessner ou Fidel, que o faça. Há muitos por aí,
não é mesmo? Se acha que o Brasil estaria melhor sob uma monarquia absolutista,
sob um partido único, como na China, ou pensa isto ou aquilo sobre os costumes,
vejo como um direito de cada um. O que me incomoda é viver em um país em que
alguém é preso, sem contraditório ou o devido processo, porque uma autoridade
pública, genial que seja, acha que suas opiniões representam uma “ameaça à
democracia”.
Posso estar errado. Vejo muita gente por aí satisfeita com a “tutela de opinião”, feita pelo Estado, ou a “curadoria”, na expressão utilizada por um ministro de nossa Suprema Corte. Vejo muita gente dizendo que é preciso separar o joio do trigo. Que mentira não é opinião, retórica contra a democracia não é opinião, distorção de fatos não é opinião, valendo o mesmo para preconceitos ou ofensas a certas autoridades. E que tudo isso deveria ficar a cargo de um grande tribunal julgar, quem sabe sob a chancela de algum segmento hegemônico na opinião pública.
Foi o que se viu na recente desmonetização
das contas de blogueiros que defendiam o voto impresso e foram punidos por não
dizerem a “verdade”, como se lia em uma sentença do TSE. Viu-se o mesmo na
cassação do deputado Fernando Francischini, por uma live contendo “informações
falsas sobre a urna eletrônica”. Nesse caso, reinventamos a Constituição.
Parlamentares passam a ser imunes por suas “palavras e opiniões”, como reza seu
artigo 53, apenas para dizer aquilo que se prove, ato seguinte, verdadeiro. Me
pergunto se o desejo do constituinte, quando criou o instituto da imunidade
parlamentar, não era precisamente que nossos representantes agissem por
convicção e sem medo do poder. Arriscando a errar, por vezes, para que pudessem
acertar, em tantas outras.
A decisão sobre a prisão de Allan dos
Santos será lida, algum dia, como testemunho histórico de nosso “Estado tutor”.
Entre os delitos mencionados, lê-se a divulgação de notícias falsas ou
“apresentadas de forma parcial”; o incentivo à “polarização entre os poderes”;
o “discurso de ódio” e a “animosidade” na sociedade brasileira; a pregação de
“ideias antidemocráticas”; “ataques contra agentes políticos” e mensagens
“apelativas”, para ganhar dinheiro; o uso da “retórica amigo-inimigo”
(referência a Carl Schmitt?); e, por fim, a desfeita de “apontar o dedo médio”
para o edifício do STF.
Abundância de grandes palavras e escassez
de fatos com alguma “objetividade”, palavrinha que parece irritar tanta gente.
Na guerra de todos contra todos em que se transformou nossa democracia digital,
é curioso como mesmo uma pergunta elementar como “por que o sujeito foi preso?”
soa inútil. A imensa maioria julga a partir de sua predileção política. Não é
assim que se faz uma democracia baseada em direitos.
Não me surpreendo com essas coisas. Sempre
achei a paixão política uma força muito mais poderosa do que a lealdade aos
princípios abstratos do liberalismo democrático. O dito “discordo do que você
diz, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-lo” não passa de uma
quimera aqui na selva. Liberdade de expressão se tornou um tema quase
impossível em meio às guerras culturais do nosso tempo. Não é simples aceitar
que devemos tolerar ideias “bárbaras”, que não merecem “proteção alguma”, como
li, dias atrás, em uma pitoresca interpretação do paradoxo da tolerância, de
Popper, segundo a qual não devemos aceitar as ideias que nós, a partir do que
nos der na telha, definimos como “intolerantes”.
A democracia de tutela é uma variante do
binômio “democracia e relativização de direitos”, tão próprio dos atuais
iliberalismos, à esquerda ou à direita. No caso brasileiro, são tipos da “nova
direita” que vão indo para o xilindró. Mas os ventos podem mudar. Acho curioso
que as pessoas que hoje vibram com o estremecimento do direito dos outros nunca
imaginam que um dia o mesmo possa acontecer com seus próprios direitos.
É possível que a democracia de tutela seja
nossa opção histórica. Nunca alimentei muitas ilusões de que um liberalismo
robusto, fundado em direitos individuais, com algo parecido à Primeira Emenda
americana, fincaria raízes por aqui. Temo apenas pelo que aprendi com as lições
da história. Com John Milton aprendi que ninguém, nem os melhores juízes, é
infalível; com Madison, que não cabe ao Estado ditar a verdade, que fatos e
opiniões frequentemente andam misturados, e que é preciso tolerância, pois “o
excesso faz parte do uso de qualquer coisa”. Com John Stuart Mill aprendi que o
erro nos presta o favor de colocar a verdade continuamente em teste, não
permitindo que ela se transforme em sua caricatura: o dogma.
E diria que todos aprendemos com Voltaire.
Acho graça quando escuto que a Justiça pode se guiar pelo que “todo mundo sabe”
ou em juízos de ofício. Num tempo muito mais violento que o nosso, foi contra
isso que Voltaire se levantou ao escrever seu Tratado sobre a Tolerância, em 1762. O estopim veio com
o martírio de Jean Calas, um pai de família de Toulouse acusado de matar o
próprio filho por motivos de religião. Acusado pela multidão fanatizada, foi
martirizado na roda. Sem provas, sem contraditório, com base em um decreto
ilegal, por um punhado de juízes que tinham o hábito de “falar à cidade com
arrebatamento”.
Seu Tratado se
tornou um libelo contra o fanatismo e a intolerância, inspirando gerações de
intelectuais a perseguir princípios de justiça, em vez da paixão política. E a
não silenciar diante de eventuais maiorias. Em um mundo diverso, ele ensina, a
tolerância é o caminho possível para a pacificação da sociedade. “A Alemanha
seria um deserto de ossadas de católicos, evangélicos e anabatistas”, diz, “se
a paz de Vestfália não tivesse garantido a liberdade de consciência.”
Para combater o sectarismo, ele sugere um
caminho muito diferente do nosso: em vez da coerção, a liberdade e a
multiplicidade de ideias. “Quanto mais seitas”, diz, “menos cada uma delas será
perigosa. A multiplicidade as enfraquece.” É a perseguição que mantém seu
vigor, e é a força das ideias que vai superar o fanatismo. “O melhor método de
diminuir o número dos maníacos”, ele diz, “é o de deixar essa doença do
espírito sob o controle da razão.” Voltaire diz algo caro à tradição moderna da
liberdade de expressão: a melhor forma de combater más ideias é com ideias
melhores. Ideias que são, boas ou más, prerrogativas dos cidadãos, e não do
Estado.
Eis o espírito do iluminismo. Nossos
tribunais, que hoje se dedicam a calar as “más ideias” banindo ou mandando prender,
entram em um jogo que deveriam apenas arbitrar, com serenidade. Sua melhor
contribuição seria ajudar o país a consolidar uma democracia inclusiva, pautada
pela liberdade e pela tolerância. Estou longe de achar que seja um caminho
fácil ou mesmo provável. O horizonte que vejo à frente é o de uma democracia de
tutela. É por isso que tirei o pó de velhos livros e fui reler Voltaire, por
estes dias tristes.
*Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 10 de novembro de
2021, edição nº 2763
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