Folha de S. Paulo
Presidente encara as urnas sem o tríplice
discurso que o catapultou ao Planalto
Jair
Bolsonaro não pisou na COP26, preferindo fazer turismo na Itália,
onde exercitou violências e delinquências. Mas sua participação virtual na
cúpula do clima e os compromissos
formais assumidos pelo governo brasileiro derrubaram a última
estaca ideológica do bolsonarismo.
O acaso, as circunstâncias imponderáveis
têm peso histórico maior do que imaginam os deterministas. Bolsonaro, o
deputado primitivo engajado na promoção das carreiras políticas de sua família,
nunca foi mais que um bufão insignificante.
Contudo, em 2018, ergueu-se em torno de sua
candidatura uma tenda ideológica abrangente, apoiada em três estacas: o partido dos
procuradores, o partido ultraliberal e o partido da extrema direita.
A terceira, última remanescente, desabou na COP26.
O partido dos procuradores, organizado
durante a Lava Jato ao redor do tema da corrupção, prega a redenção judicial do
Brasil e, no percurso, a explosão do sistema político-partidário. A renúncia de
Sergio Moro assinalou a queda da primeira estaca da tenda bolsonarista.
Hoje, depois da cisão, essa corrente tenta se reagrupar no Podemos, sob a ainda incerta candidatura presidencial do ex-juiz que manchou sua toga.
O partido ultraliberal personificado pela
figura de Paulo Guedes agita a bandeira da salvação econômica nacional, por
meio da célebre "mão invisível" do mercado.
O fracasso do superministro incapaz de
entregar reformas e sua submissão ao populismo fiscal concluiu-se com a
violação do teto de gastos. A PEC dos
precatórios, um calote explícito e uma ruptura de contratos,
adiciona o insulto à injúria, destruindo mais uma estaca ideológica do
bolsonarismo.
Há pouco, ajoelhando-se perante Bolsonaro
para agradecer a oportunidade de continuar a servi-lo, Guedes celebrou a
permanência da "aliança entre conservadores e liberais". Ali, no
palco de sua humilhação, incorreu em óbvio equívoco conceitual: os liberais de
araque não se uniram à direita conservadora, mas à extrema direita reacionária.
O conservador ama as instituições a tal
ponto que se converte em obstáculo à mudança necessária. O reacionário, pelo
contrário, almeja incendiar as instituições para restaurar uma harmonia
puramente imaginária.
A ultradireita histérica, golpista e
conspiracionista, terceira estaca do bolsonarismo, debilitou-se aos poucos,
numa trajetória pontuada pelas demissões de Abraham Weintraub, o ministro da
Ignorância, e de Ernesto Araújo, o ministro do Isolamento Internacional. Agora,
finalmente, a enxurrada da COP26 levou-a de roldão.
Retratações iluminam a alma dos líderes
políticos. Lula abjurou com graça, de peito aberto, quando assinou a Carta aos
Brasileiros, em 2002. Bolsonaro abjurou ao seu estilo, evasivo e
acovardado, perante a cúpula do clima.
A ausência em Glasgow, realçada pela
provocativa perambulação em terras italianas, funcionou como encenação dirigida
a seu público cativo de fanáticos extremistas. Mas, de fato, confirmando a
adesão brasileira às metas do Acordo de Paris e juntando sua assinatura aos
novos compromissos sobre florestas e metano, o presidente calcinou a plataforma
ideológica da extrema direita.
Claro que Bolsonaro não tem a mais remota
intenção de honrar os compromissos ambientais assumidos.
A palavra assinada, porém, vale como
abdicação. Toda a narrativa da conspiração "globalista" contra a
soberania nacional, montanha sagrada da extrema direita, dissolve-se num vídeo
e numa coleção de documentos diplomáticos.
"Queima o que adoraste, adora o que
queimaste": a COP26 foi a peregrinação a Canossa de um saltimbanco
caricatural.
A tenda caiu. Bolsonaro encara as urnas de
2022 sem o tríplice discurso que, numa conjuntura singular, o catapultou ao
Planalto. Resta-lhe, apenas, o antilulismo
exaltado, uma plataforma puramente negativa. É o caminho mais direto
rumo ao banco dos réus.
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