sábado, 6 de novembro de 2021

Demétrio Magnoli - Agonia do bolsonarismo

Folha de S. Paulo

Presidente encara as urnas sem o tríplice discurso que o catapultou ao Planalto

Jair Bolsonaro não pisou na COP26, preferindo fazer turismo na Itália, onde exercitou violências e delinquências. Mas sua participação virtual na cúpula do clima e os compromissos formais assumidos pelo governo brasileiro derrubaram a última estaca ideológica do bolsonarismo.

O acaso, as circunstâncias imponderáveis têm peso histórico maior do que imaginam os deterministas. Bolsonaro, o deputado primitivo engajado na promoção das carreiras políticas de sua família, nunca foi mais que um bufão insignificante.

Contudo, em 2018, ergueu-se em torno de sua candidatura uma tenda ideológica abrangente, apoiada em três estacas: o partido dos procuradores, o partido ultraliberal e o partido da extrema direita. A terceira, última remanescente, desabou na COP26.

O partido dos procuradores, organizado durante a Lava Jato ao redor do tema da corrupção, prega a redenção judicial do Brasil e, no percurso, a explosão do sistema político-partidário. A renúncia de Sergio Moro assinalou a queda da primeira estaca da tenda bolsonarista.

Hoje, depois da cisão, essa corrente tenta se reagrupar no Podemos, sob a ainda incerta candidatura presidencial do ex-juiz que manchou sua toga.

O partido ultraliberal personificado pela figura de Paulo Guedes agita a bandeira da salvação econômica nacional, por meio da célebre "mão invisível" do mercado.

O fracasso do superministro incapaz de entregar reformas e sua submissão ao populismo fiscal concluiu-se com a violação do teto de gastos. A PEC dos precatórios, um calote explícito e uma ruptura de contratos, adiciona o insulto à injúria, destruindo mais uma estaca ideológica do bolsonarismo.

Há pouco, ajoelhando-se perante Bolsonaro para agradecer a oportunidade de continuar a servi-lo, Guedes celebrou a permanência da "aliança entre conservadores e liberais". Ali, no palco de sua humilhação, incorreu em óbvio equívoco conceitual: os liberais de araque não se uniram à direita conservadora, mas à extrema direita reacionária.

O conservador ama as instituições a tal ponto que se converte em obstáculo à mudança necessária. O reacionário, pelo contrário, almeja incendiar as instituições para restaurar uma harmonia puramente imaginária.

A ultradireita histérica, golpista e conspiracionista, terceira estaca do bolsonarismo, debilitou-se aos poucos, numa trajetória pontuada pelas demissões de Abraham Weintraub, o ministro da Ignorância, e de Ernesto Araújo, o ministro do Isolamento Internacional. Agora, finalmente, a enxurrada da COP26 levou-a de roldão.

Retratações iluminam a alma dos líderes políticos. Lula abjurou com graça, de peito aberto, quando assinou a Carta aos Brasileiros, em 2002. Bolsonaro abjurou ao seu estilo, evasivo e acovardado, perante a cúpula do clima.

A ausência em Glasgow, realçada pela provocativa perambulação em terras italianas, funcionou como encenação dirigida a seu público cativo de fanáticos extremistas. Mas, de fato, confirmando a adesão brasileira às metas do Acordo de Paris e juntando sua assinatura aos novos compromissos sobre florestas e metano, o presidente calcinou a plataforma ideológica da extrema direita.

Claro que Bolsonaro não tem a mais remota intenção de honrar os compromissos ambientais assumidos.

A palavra assinada, porém, vale como abdicação. Toda a narrativa da conspiração "globalista" contra a soberania nacional, montanha sagrada da extrema direita, dissolve-se num vídeo e numa coleção de documentos diplomáticos.

"Queima o que adoraste, adora o que queimaste": a COP26 foi a peregrinação a Canossa de um saltimbanco caricatural.

A tenda caiu. Bolsonaro encara as urnas de 2022 sem o tríplice discurso que, numa conjuntura singular, o catapultou ao Planalto. Resta-lhe, apenas, o antilulismo exaltado, uma plataforma puramente negativa. É o caminho mais direto rumo ao banco dos réus.

 

 

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