Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Bolsonaro mostrou-se aquém do poder e com
grandes dificuldades para compreender o que a função presidencial dele exige
No cenário das eleições deste ano, há
vários componentes que confirmam mudanças na tradição brasileira de confrontos
eleitorais. Resultam das contradições acumuladas nas estruturas de referência
das mentalidades, das ações, das atitudes dos políticos e do povo. É o lado
invisível e só acessível à ciência do que é próprio das realidades sociais, que
são sempre realidades em transe e em transição. A sociedade se move todo o
tempo, não necessariamente na direção dos que querem movê-la nem dos que acham
que a movem e manipulam.
A circunstância da política no Brasil foi
desconstruída pela ação conjunta de Bolsonaro, dos bolsonaristas e do vírus da
covid-19. O verdadeiro político, como o verdadeiro empresário, é aquele capaz
de criar e de inovar em face do imprevisto. Não é isso que estamos vendo.
O componente mais significativo dessas
mudanças é o de que, no governo do que é aqui definido como direita, as forças
sociais espontâneas peneiram os atos do governante e de seus ministros e
coadjuvantes. Reduzem cada vez mais a malha do peneiramento e nela retêm uma
categoria política residual, a do que o governante propriamente é.
O principal aspecto da nova realidade, de que tem sido ele protagonista, é que os recursos do escamoteamento de suas limitações serão agora menos eficazes. Seu teatro do autoritarismo militarizante é frágil, seus coadjuvantes são amadores e demasiadamente cúmplices, o que aumenta o poder revelador das contradições políticas de que ele é produto.
Os mesmos processos fabricam e refabricam
outros protagonistas do processo político e eleitoral. As contradições do PT e
de Lula fabricaram Bolsonaro e os bolsonaristas, cujas contradições
refabricaram Lula, o PT e as esquerdas que podem nos restituir a democracia e
repropor e fortalecer a pluralidade de que a democracia carece.
O processo político é dialético. E nos
revelou o fundamento da direita brasileira mal esboçada. Aqui, é ela o atraso
econômico, social, religioso e cultural e o são as expressões doentias desse
atraso. Nesse sentido, não tem ela envergadura nem condições políticas para
propor e protagonizar um projeto nacional de crescimento econômico sem
desenvolvimento social que tem sido o objetivo do governo Bolsonaro e do
bolsonarismo.
Em 2018, não havia dúvida de que Bolsonaro
era o candidato da direita e arrastava atrás de si os dispersos e dissimulados
direitistas que poderiam ser beneficiados pela clara reorientação do eleitorado
para fora do movimento político pendular. Mas que direita era aquela?
O enigma, portanto, na eleição próxima, é o
da natureza desse direitismo reconfigurado pelo poder, especialmente nas
grandes revelações políticas do descompasso entre o governante e o poder, um
poder maior do que quem acha que governa. Bolsonaro mostrou-se aquém do poder e
portanto com grandes dificuldades para compreender o que a função presidencial
dele exige. Esse desencontro expressou-se nas decisões erradas que vitimaram
diretamente a população, na questão da pandemia e na questão do emprego e do
trabalho.
Em nossa história política, o atraso tem
sido dissimulado ou diluído nas ideologias híbridas e nas ações híbridas. A
reunião do presidente e de seus ministros, no dia 22 de abril de 2020, cujo
vídeo o STF mandou exibir, revelou o quanto o atraso preside as orientações do
governo nos seus vários âmbitos. Decantou o hibridismo que lhe acobertava as
insuficiências e expôs que a direita é nele um programa para assegurar o atraso
lucrativo e imobilista. Direita, aqui, é isso, o poder do atraso.
Em vários países, estuda-se hoje a
ignorância, dado o peso que tem na realidade social, cultural e, aqui, também
política. Mas não se trata de ignorância no estrito senso. Trata-se da
ignorância que o atraso, como limite de discernimento de quem governa, revela e
ressalta. O desdém pela ciência é expressão de atraso. O menosprezo pela vida,
no pressuposto de que morrer é inevitável, é uma concepção retrógrada. O
desapreço pela vacina, pelo distanciamento, pelas máscaras na prevenção contra
o vírus, é atraso. O atraso da presunção do poder pessoal do governante nele
revela a dificuldade para compreender as instituições e suas funções.
As irracionalidades do inesperado, como a
pandemia, as enchentes, os escorregamentos, os desastres sociais e naturais,
expuseram as enormes insuficiências de personalidades formadas na cultura do
atraso. No capitalismo, o atraso é irracional e anticapitalista. Assegura formas
retrógradas de riqueza mas não assegura a cumplicidade da vítima nem a
durabilidade do absurdo. O atraso, aqui transformado em programa político e em
protagonismo ideológico, afunda o capitalismo e suas empresas.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp).
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