Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Visão predatória e de curto prazo do país
guia aliança do Centrão com o bolsonarismo
Todos os países democráticos precisam
montar coalizões para produzir governabilidade. Nestes tempos de grande
complexidade social, essas alianças se tornaram ainda mais amplas e, por vezes,
inusitadas. Assim é o caso da Alemanha atual, com a parceria entre
social-democratas, verdes e liberais - a chamada “coalizão semáforo” por causa
das cores dos três partidos. Também foi o caso recente de Portugal, com sua
Geringonça, que gerou uma improvável junção na esquerda durante cerca de seis
anos.
O presidente Bolsonaro, inicialmente avesso
a qualquer pactuação com os partidos políticos, também montou sua geringonça,
presente no casamento entre bolsonarismo e o Centrão. O efeito desse pacto,
aparentemente estranho, já é visível - e negativo - para o país, mas poderá ter
impactos ainda mais profundos se não entendermos qual bicho surgiu dessa
junção.
O casamento entre o bolsonarismo e o Centrão nasceu de uma circunstância de sobrevivência e de uma oportunidade de fortalecimento inédito. A circunstância de sobrevivência foram os vários fatos que desgastaram Bolsonaro e sua família: a prisão de Fabrício Queiroz, o amigo que sabe tudo do passado; as crises com o STF e a possibilidade de abertura de um processo de impeachment após cada arroubo autoritário e desmedido do chefe maior e/ou do séquito.
O pior é que o próprio governo se tornou
fonte de crimes, sendo as mortes gigantescas e evitáveis ocorridas na pandemia
de covid-19 o maior escândalo do país desde a redemocratização - afinal,
milhares de vidas perdidas ou de pessoas sequeladas por inépcia e incentivo
governamental é algo mais grave e profundo do que qualquer problema dos
governos anteriores.
Para evitar o pior, Bolsonaro entregou boa
parte do poder paulatinamente a parlamentares do chamado Centrão, comandados
por Arthur Lira. Aqui está a oportunidade de um fortalecimento inédito, pois se
a maioria desses deputados (e alguns senadores) serviram aos mais diversos
governos, nunca lhes fora dada a chave do cofre federal como agora, além do
comando de toda a pauta legislativa da Câmara.
Mas se engana quem pensa que tal união
aparentemente insólita serviu para acabar com o modelo original do
bolsonarismo. Trata-se de um casamento em que se mantiveram, em alguma medida,
as individualidades e no qual se produziu um novo ser, que junta o que cada
qual tem em comum com o outro. Por isso, é uma soma em que as partes se mantêm
como atores do jogo político.
Vale então entender cada um dos elementos
da geringonça à brasileira. O primeiro remete ao bolsonarismo-raiz, que
entregou sim parte do poder, mas continua fazendo uma política centrada em
valores e na definição de inimigos que devem ser atacados. A entrega do cofre
ao Centrão não acabou com a lógica de guerra cultural que move os
bolsonaristas, a qual, ressalte-se, também está ligada à defesa dos interesses
de certos grupos pertencentes a essa facção política. Em poucas palavras: o
bolsonarismo não está atrelado apenas a questões de moralidade; ele é
igualmente relacionado a nichos de poder e renda.
Um dos principais instrumentos do
bolsonarismo de mobilização política e (tentativa) de destruição dos inimigos é
a sabotagem das instituições e políticas públicas construídas desde 1988, marco
da redemocratização no Brasil. O presidente Bolsonaro e seu séquito atuam
continuamente em prol da desmoralização e inviabilização de várias partes desse
pacto constitucional. É uma lógica de guerrilha permanente contra estruturas
institucionais e setores como a ciência, a universidade, as escolas, a cultura,
os artistas, os ambientalistas e todos aqueles identificados como alvos
preferenciais de uma cruzada destinada a construir a coesão do bolsonarismo.
A política da sabotagem se soma ao
incentivo a grupos e ideias vinculados à destruição não só dos fundamentos do
pacto constitucional, como também de uma concepção mais moderna de sociedade.
Daí a defesa da autonomia e rebelião dos policiais, do armamentismo e da lógica
brucutu de segurança pública, como igualmente da visão conservadora das ações
culturais e educacionais, buscando deslegitimar os especialistas e valorizando
a prevalência das escolhas das famílias, o que gera pautas como a Escola sem
Partido e o homeschooling. Na mesma linha, fica-se do lado do senso comum
contra a ciência, em prol da perspectiva do “homem comum” e suas decisões livres
de ordenamento estatal. Por fim, apoia-se propostas legais que favorecem um
modelo predatório de ganhar dinheiro sem as peias da regulação do Estado, como
os garimpeiros e/ou empresários que não querem regulamentação ambiental - até
sobre cavernas!
Muitas das propostas bolsonaristas não
geraram até agora transformações estruturais das instituições e das políticas
públicas. Mesmo assim, o modelo da sabotagem ou da defesa de ideários radicais
resultam em confusões, desorganizações setoriais, perda de recursos para
investir em áreas-chave (como a social, a científica e a ambiental), além de
servir para mobilizar o bolsonarismo em sua guerrilha permanente. Mas talvez
não seja necessário transformar o modelo estatal dos “inimigos”, até porque não
se saberia o que colocar no lugar e nem se acredita, no fundo, em tudo o que se
propaga nas redes sociais - os bolsonaristas sabem que o homeschooling em larga
escala é inviável, mas o importante é desmoralizar a escola.
Algumas propostas do bolsonarismo, no
entanto, vão adiante, em particular as que geram ganhos para certos grupos
predatórios em relação aos interesses coletivos e ao meio ambiente. Como sempre
no Brasil, há muitos atores se organizando para algum ganho patrimonialista e
de curto prazo junto ao Estado brasileiro - e ninguém pode dizer que vários
deles não tiveram sucesso em governos distintos.
De todo modo, o bolsonarismo, na hipótese
mais otimista sobre seus efeitos, impede a continuação de qualquer processo
modernizador do Brasil. Assim, além da circunstância de sobrevivência que moveu
o presidente Bolsonaro, há um sentido mais profundo que dá a liga do casamento
com o Centrão.
Todos os governos desde a redemocratização
fizeram alianças com partidos classificados como Centrão para montar uma
coalizão governista. No entanto, há três características inéditas nessa parte
da geringonça bolsonarista. A primeira é o grau de independência, com um poder
incontrolável e intransparente, que foi repassado a esse condomínio de
deputados e (em menor medida) senadores. Antes, havia um Ministério da Fazenda
e algumas áreas estratégicas que faziam o contrapeso. Hoje, todo o poder
orçamentário foi repassado aos fisiológicos.
Além disso, em segundo lugar, as coalizões
montadas pelos outros presidentes buscavam combinar negociação e repartição do
poder (com maior ou menor sucesso) com um processo de universalização e
impessoalização das regras de funcionamento das políticas públicas. A lógica
delas foi paulatinamente se desvencilhando da maneira clientelista de agradar
apenas a um público escolhido pelos políticos de ocasião. Foi isso que permitiu
a construção do SUS, a expansão inédita da educação brasileira em todos os
níveis, um programa de transferência de renda - o Bolsa Família - que não
precisava de padrinhos, um sistema meritocrático de financiamento da ciência, o
investimento em moradias populares, a criação de agências regulatórias
independentes e, para não esquecer, a responsabilidade fiscal como peça-chave
da estabilização econômica.
É claro que nem todos os bolsões
clientelistas foram destruídos pelos tucanos e petistas, sendo que em alguns
casos eles geraram fontes corruptas para financiamento de campanhas eleitorais.
Mesmo assim, havia uma trilha mais universalista e impessoal que era crescente,
especialmente na lógica do Orçamento da União e na expansão das políticas
públicas sociais. Podem não ter vencido o atraso, mas tinham mais afinidade com
a modernização.
O novo modelo bolsonarista de governar é um
passo para trás na modernização da gestão do dinheiro público. O clientelismo
cresceu brutalmente e com dois elementos perversos: os gastos estão se tornando
menos transparentes e as principais políticas públicas do país, que servem aos
mais pobres e à construção do futuro da nação, estão perdendo recursos, aumentando
os problemas estruturais.
O terceiro elemento dessa aliança do
Centrão com o bolsonarismo é o que os une mais: uma visão predatória e de curto
prazo do país. Não importa se a PEC dos Precatórios vai quebrar o Brasil daqui
a alguns anos, se o Ministério da Saúde contribui para a morte de milhares de
brasileiros, se o MEC fechou os olhos para o maior apagão da educação
brasileira em décadas, o que inviabiliza nosso futuro como nação em termos
econômicos, sociais e políticos. Prestem atenção, leitores: o bicho que
resultou dessa geringonça à brasileira é a defesa do atraso socioinstitucional.
Desse modo, o casamento inusitado se transforma em união perfeita.
Mesmo com todos esses estragos, o
bolsonarismo pode ter entre 20% a 25% dos votos em outubro, tendo hoje mais
chances do que outros de chegar ao segundo turno, no qual Lula por ora é
favorito. Porém, a guerra pela manutenção no poder será feita por um belicismo
inédito na democracia brasileira. E mesmo que Bolsonaro perca, os frutos da
geringonça bolsonarista não serão desmontados tão facilmente pelo próximo
governo.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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