Naquelas infortunadas circunstâncias, por
ensaio e erro, descobriu-se o caminho que poderia levar a interrupção do regime
autoritário de então pela ação combinada dos vetores sociais animados pelos
temas da democracia política, com ênfase nos processos eleitorais, tal como na
eleição de 1974 com a vitória da candidatura de Orestes Quércia ao Senado, com
aqueles originários da questão social vigorosamente expressos pelo sindicalismo
operário, especialmente do ABC em São Paulo e que se espraiou em todo o país.
A fórmula vitoriosa tinha como consigna a democracia política aliada à questão social e se fez presente ao longo do tempo em que se elaborou o texto constitucional de 88. O fio da meada começa a escapar do nosso controle quando o PT se recusa a subscrever a Carta, e, mais gravemente ainda, na sucessão presidencial de 1989, quando em um processo autofágico as forças que conduziram a democratização competem entre si e favorecem a vitória de um cavaleiro da fortuna que viria a sofrer um impeachment logo depois.
Apartado da questão democrática o tema do social
adquire por assim dizer tintas de autonomia, num processo que se extrema no
governo Dilma Roussef, franqueando a via para que elites contrariadas em seus
interesses impusessem a ela um processo de impeachment em meio a uma política
de caça às bruxas que se difundiu no país a pretexto de combate à corrupção. No
curso desse errático movimento desde a sucessão de 1989 se desfizeram, pouco a
pouco, os laços sociais, os sentimentos comuns e a própria
memória do que foram as lutas pela democratização do país. No seu lugar,
acabaram se impondo vocalizações negadores da política e de suas instituições.
Ninguém me representa foi o refrão presente nas manifestações desse que trouxe
consigo um processo de desertificação da política.
Mais uma vez, abriu-se uma ampla janela de
oportunidade para que setores reacionários das elites empalmassem as rédeas do
Estado vindo a recorrer ao que havia de mais obscuro na cena parlamentar,
assumindo a candidatura de Jair Messias Bolsonaro, personagem nostálgico do
regime do AI-5, que assumirá a presidência com o declarado propósito de
sepultar a obra e as lembranças dos idos das lutas pela democratização do país,
especialmente a Constituição.
Para esse fim, com os cuidados de um plano
de Estado-maior, cogitou-se desferir um golpe letal na resistência democrática
que freava suas iniciativas autoritárias com a conspiração do 7 de setembro,
que se frustrou por motivos ainda não de todo explicados. A sorte do regime
Bolsonaro seria jogada no cenário imprevisto da sucessão de 2022 e não num
golpe de mão. Decorre daí o que não deixa de significar uma vitória das forças
democráticas, que o novo terreno em que se travam as lutas contra a reprodução
do autoritarismo seria o das instituições e do voto.
Nesse novo teatro de operações, tornou-se
imperativo para a democracia ser capaz de apresentar uma candidatura
competitiva, evitando experiências negativas, como as de 1989, quando ela se
deixou fragmentar. A candidatura Lula, a confiar nas pesquisas eleitorais, logo
se destacou em que pesem as críticas sobre os longos anos de hegemonia petista
por parte da esquerda democrática e de outros setores de igual profissão de fé
nas instituições da democracia. Nesse sentido, a opção de Lula por uma aliança
com Alkmin, personalidade política com larga experiência de governo e com
histórico de vida comprometido com as instituições da democracia, ambos
tarimbados na política e fartamente advertidos pelos perigos que rondam o
momento presente, significa, na prática, uma atitude autocrítica em relação às
suas antigas rejeições às forças que se identificam com as concepções da
social-democracia.
As cartas estão na mesa, e de nada servem
as especulações sobre uma eventual irrupção de uma terceira via, salvo para impedir
a conformação de uma robusta frente política em torno de Lula e Alkmin que se
credencie a dar um basta no flagelo a que estamos expostos. No horizonte já se
divisa a possibilidade de uma coalizão tão ampla quanto a que soubemos
construir nas lutas pelas diretas e que nos promete um caminho de vitória.
É lição antiga a de quem não aprende com
seus próprios erros esteja condenado a repeti-los. A esquerda democrática é
herdeira de uma longa história de alianças, a começar por Marx que em 1848 se empenhou
em construir uma frente política entre a social-democracia e os liberais em
suas lutas pela democratização da Alemanha, e que segue como recurso de sua
afirmação em momentos decisivos da sua trajetória, como nos tempos sombrios das
lutas contra o nazi-fascismo. Em nosso país temos a experiência vivida, tanto
na resistência ao Estado Novo dos anos 1930, como há pouco contra o regime do
AI-5, da fertilidade das vias das alianças políticas em favor da democracia,
como também conhecemos os desastres a que fomos levados por ignora-las.
A aliança Lula-Alkmin recupera as melhores
inspirações que estiveram presentes nas lutas contra o regime do AI-5, mas por
si só, sem se encorpar com as demais forças democráticas e sem conquistar a
imaginação social de todos os descontentes com o que aí está, nada lhe afiança
o seu sucesso e sua intenção de nos devolver a feliz combinação da questão
social com a da democracia política.
É imperativo reconhecer o caminho de pedras
que a democracia tem pela frente que se defronta com inimigos que conhecem o
terreno e estão dotados de amplos recursos e dispostos a uma luta encarniçada e
sem quartel em defesa dos privilégios sobre os quais assentam seus domínios.
Nesse combate não podemos dispensar a experiência e o tirocínio de quadros já
provados e que se alinham em posições de liderança na luta comum de todos os
democratas.
*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio
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