sexta-feira, 13 de maio de 2022

Maria Cristina Fernandes: Explode a bomba-relógio da pandemia

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Se a CPI foi o clímax do conflito político provocado pela incúria, corrupção e oportunismo, a tramitação do piso nacional dos enfermeiros mostrou o que acontece na ponta da linha quando os holofotes foram embora

 “Diferentemente do que pode passar nas manchetes, segundo as quais os hospitais da avenida Paulista crescem e estão na bolsa de valores, esta não é a realidade dos leitos dos hospitais privados.” O clínico-geral Breno de Figueiredo Monteiro apontou para uma religiosa sentada numa cadeira lateral da comissão, Irmã Nila, gestora de um hospital beneficente na cidade de Alanquer, a 695 quilômetros de Belém, e continuou seu relato: “Esse hospital, para sobreviver no dia de hoje, faz rifas em suas redes sociais, ganha do colono do interior saco de farinha, material de limpeza. É isso que os gestores dos hospitais filantrópicos fazem para manter abertas suas instituições; até enfeites de Natal fazem para sobreviver”.

Presidente da Confederação Nacional de Saúde, uma espécie de CNI do setor, Monteiro foi o primeiro a falar na única audiência pública realizada na Comissão de Seguridade Social da Câmara para discutir o piso nacional da enfermagem, aprovado na semana passada. Convidado na condição de representante dos patrões, recusou-se a criticar o piso: “Somos mais de 2 milhões, 614 mil trabalhadores na saúde privada (...) Somos maiores do que a construção civil e do que a agricultura. A enfermagem, que representa quase 50% da nossa força de trabalho, é a força motriz, é a coluna dorsal dos serviços de saúde”.

Se a covid-19 e os problemas dela resultantes para a saúde pública pudessem ser resumidos num único projeto, seria este. A CPI da Pandemia produziu o clímax do conflito político provocado pela incúria, corrupção e oportunismo, mas a tramitação deste projeto mostrou o que acontece na ponta da linha quando os holofotes vão embora.

Convergiram para este projeto os profissionais mais sacrificados do enfrentamento da covid-19, gestores hospitalares afogados em custos sob pressão da inflação, parlamentares de olho nos votos do setor e representantes do Ministério da Economia alarmados com o impacto fiscal. Depois de 20 anos de tramitação, o piso nacional valeu-se da comoção provocada pela pandemia para tentar sair do papel. Passou na Câmara e empacou no Senado, onde se buscam as fontes de financiamento.

O impacto desse piso de R$ 4.750 para enfermeiros, ficando técnicos e auxiliares com valores que variam de 50% a 70% desse parâmetro, fica entre R$ 18,2 bilhões e R$ 22,5 bilhões a depender da autoria dos cálculos - sendo o primeiro da Associação Brasileira dos Planos de Saúde e o segundo, do Ministério da Economia.

A audiência pública de que participou o presidente da CNS acabou por ser a única desde que o projeto foi retomado, em virtude das restrições provocadas pela pandemia e pela conveniência política das mesas diretoras das duas Casas. Na Câmara dos Deputados, as comissões só foram instaladas no fim de abril, quase três meses depois de iniciados os trabalhos legislativos. Outras audiências públicas, mais curtas, acabariam sendo realizadas em fevereiro no grupo de trabalho montado para o projeto.

O tema é daqueles contra o qual ninguém se atreve a se insurgir. De 1,2 milhão de profissionais, o Conselho Federal de Enfermagem calcula que quase 60 mil se contaminaram na linha de frente, uma grande parte dos quais numa época em que não havia vacina. Com 871 óbitos, o Brasil concentraria, segundo a entidade de trabalhadores do setor, um terço das mortes de profissionais de enfermagem no mundo.

Os depoimentos colhidos na comissão deram conta da falta de equipamento de proteção individual, do excesso de trabalho em dupla jornada e da falta de treinamento. Isolados nos hospitais, sem poderem ir para suas casas para não contaminar familiares nem levar de volta para os hospitais o contato com o vírus em suas famílias e comunidades, muitos acabaram mal acomodados nos hospitais, sem alimentação ou local de descanso adequados. Mais da metade dos profissionais, segundo o conselho da categoria, foram diagnosticados com sofrimento psíquico.

A Organização Mundial da Saúde estima que o desgaste a que o trabalho é submetido leve, até 2030, à redução pela metade dos 27 milhões de trabalhadores que, no mundo todo, se dedicam à enfermagem. Para evitar esse “apagão” de profissionais capacitados a cuidar da população mundial, a OMS recomendou que os países adotassem políticas públicas destinadas a melhorar as condições de trabalho da enfermagem.

Se não há na saúde pública ou privada quem se insurja contra a adoção do piso salarial para a enfermagem, tampouco há quem apresente até aqui alternativas factíveis para seu financiamento. Dados do Dieese em mãos da Federação Nacional dos Enfermeiros, apresentados durante a audiência pública, mostraram que a elevação do piso para a totalidade dos 1,2 milhão de profissionais do setor terá um impacto tanto para o setor privado, que paga, em média, R$ 4 mil, quanto para o setor público.

Oito estados e o Distrito Federal já estariam enquadrados, nove estados estariam próximos do piso e nove outros, mais distantes. No setor privado, o impacto também se distingue entre aqueles hospitais cuja receita vem, majoritariamente do SUS, e aqueles cujos repasses são feitos pelos planos de saúde.

No primeiro caso, o melhor exemplo foi o do município de Alanquer. No único hospital do município, 97% dos serviços são prestados ao SUS e, por eles, a unidade é remunerada, segundo dados públicos disponíveis na internet, com R$ 336 mil.

O dirigente da Confederação Nacional de Saúde destrinchou o impacto do novo piso para uma unidade com nove enfermeiros que se dividem em turnos de oito horas: “Só com isso [o piso] custaria 58 mil reais. Para cada enfermeiro são 5 técnicos, totalizando 45 técnicos de enfermagem nesse serviço, o que daria mais de R$ 203 mil. Só o pagamento do piso salarial que está sendo pretendido - reconheço que é importante que nós o valorizemos - custaria quase 80% das receitas, sobrando 21% para todo o resto”.

Por “resto” entendam-se materiais, medicamentos, água, luz, além dos outros 50% da força de trabalho: médicos, fisioterapeutas, assistentes sociais, psicólogos e trabalhadores da manutenção. À pressão dessas entidades que dependem dos valores fixados nas tabelas do SUS acresçam-se serviços como hemodiálise. O setor, impactado na pandemia pelo quadro de insuficiência renal comum nos casos mais graves, depende, quase integralmente, da enfermagem.

O depoimento do vice-presidente da Associação Brasileira dos Centros de Diálise e Transplante, Yussif Junior, acresceu à dramaticidade do quadro o impacto da inflação galopante. Dos 144 mil pacientes de diálise do Brasil, 86% são atendidos pelo SUS, cuja tabela, segundo informou, já estaria com uma defasagem de 46%.

Uma portaria de 2021 redimensionou o atendimento aumentando em 25% o número de enfermeiros e técnicos de enfermagem necessários para o serviço. Uma clínica só se viabilizaria com, pelo menos, 300 pacientes, o que restringe o número de municípios em condições de abrigar uma unidade. Com isso, há uma concentração dos serviços de diálise, o que eleva o custo para pacientes que precisam se deslocar para frequentá-los.

Se o custo para os hospitais que dependem, quase integralmente, dos repasses do SUS é proibitivo, aqueles que auferem suas receitas de uma parcela maior de planos de saúde repassarão os custos, o que tampouco é uma saída de fácil equação.

Como o piso é nacional, a diferença de preços entre as regiões tende a reduzir, aumentando o valor cobrado em regiões em que a média salarial dos enfermeiros era mais baixa até a instituição do piso. A situação levará a um misto de redução nas margens de lucro das empresas e aumento no valor dos planos de saúde que hoje é estimado entre 15% e 20%. Como mais da metade dos salários hoje tem reajuste abaixo da inflação, é previsível que haja uma grande pressão por cancelamentos.

As empresas de planos de saúde sempre tiveram poder de pressão sobre o Congresso, mas as mudanças nas regras do financiamento da política impactou o jogo. Um parlamentar com estreito relacionamento com essas empresas diz que um projeto como este dificilmente teria andamento na época em que o financiamento privado era permitido.

A MP da Eletrobras demonstrou que essa proibição não impediu que os lobbies das termelétricas avançasse. Mesmo nesse setor, porém, ainda há parlamentares que não conseguiram transformar em espécie os valores acordados, dado o estreitamento dos controles sobre as movimentações financeiras. Com as empresas de plano de saúde a situação é mais restritiva porque, como uma grande parte delas tem capital aberto em bolsa, a governança dificulta a “lavagem” de eventuais acertos parlamentares.

Com isso, a saída se deslocou para a compensação do erário a ser buscada tanto para o setor público quanto para o privado. Entre as propostas surgidas estão o aumento de 3,5% na Contribuição Financeira sobre a Exploração Mineral (CFEM). A ideia de acabar com a isenção do ICMS sobre exportações esbarra na resistência a exportar imposto.

Para o setor privado, a ideia mais madura a circular pelo Senado é a da desoneração da folha de pagamentos das instituições. A medida, porém, enfrenta a resistência das entidades filantrópicas, que já não recolhem impostos sobre a folha. O custo dessas instituições, com a extensão do benefício para os hospitais privados, equipararia os custos e colocaria em questão a viabilidade do serviço prestado pelas entidades filantrópicas.

Ao longo da tramitação, na Câmara, não faltou quem propusesse tirar o financiamento do piso nacional da enfermagem das emendas de relator, o chamado “Orçamento secreto”, ou do fundão eleitoral de R$ 5 bilhões. As propostas não ecoaram e a bola do impasse hoje está com o Senado, Casa por onde começou a tramitar e para a qual voltou.

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