Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Se a CPI foi o clímax do conflito político
provocado pela incúria, corrupção e oportunismo, a tramitação do piso nacional
dos enfermeiros mostrou o que acontece na ponta da linha quando os holofotes
foram embora
“Diferentemente
do que pode passar nas manchetes, segundo as quais os hospitais da avenida
Paulista crescem e estão na bolsa de valores, esta não é a realidade dos leitos
dos hospitais privados.” O clínico-geral Breno de Figueiredo Monteiro apontou
para uma religiosa sentada numa cadeira lateral da comissão, Irmã Nila, gestora
de um hospital beneficente na cidade de Alanquer, a 695 quilômetros de Belém, e
continuou seu relato: “Esse hospital, para sobreviver no dia de hoje, faz rifas
em suas redes sociais, ganha do colono do interior saco de farinha, material de
limpeza. É isso que os gestores dos hospitais filantrópicos fazem para manter
abertas suas instituições; até enfeites de Natal fazem para sobreviver”.
Presidente da Confederação Nacional de
Saúde, uma espécie de CNI do setor, Monteiro foi o primeiro a falar na única
audiência pública realizada na Comissão de Seguridade Social da Câmara para
discutir o piso nacional da enfermagem, aprovado na semana passada. Convidado
na condição de representante dos patrões, recusou-se a criticar o piso: “Somos
mais de 2 milhões, 614 mil trabalhadores na saúde privada (...) Somos maiores
do que a construção civil e do que a agricultura. A enfermagem, que representa
quase 50% da nossa força de trabalho, é a força motriz, é a coluna dorsal dos
serviços de saúde”.
Se a covid-19 e os problemas dela
resultantes para a saúde pública pudessem ser resumidos num único projeto,
seria este. A CPI da Pandemia produziu o clímax do conflito político provocado
pela incúria, corrupção e oportunismo, mas a tramitação deste projeto mostrou o
que acontece na ponta da linha quando os holofotes vão embora.
Convergiram para este projeto os
profissionais mais sacrificados do enfrentamento da covid-19, gestores
hospitalares afogados em custos sob pressão da inflação, parlamentares de olho
nos votos do setor e representantes do Ministério da Economia alarmados com o
impacto fiscal. Depois de 20 anos de tramitação, o piso nacional valeu-se da
comoção provocada pela pandemia para tentar sair do papel. Passou na Câmara e
empacou no Senado, onde se buscam as fontes de financiamento.
O impacto desse piso de R$ 4.750 para enfermeiros, ficando técnicos e auxiliares com valores que variam de 50% a 70% desse parâmetro, fica entre R$ 18,2 bilhões e R$ 22,5 bilhões a depender da autoria dos cálculos - sendo o primeiro da Associação Brasileira dos Planos de Saúde e o segundo, do Ministério da Economia.
A audiência pública de que participou o
presidente da CNS acabou por ser a única desde que o projeto foi retomado, em
virtude das restrições provocadas pela pandemia e pela conveniência política
das mesas diretoras das duas Casas. Na Câmara dos Deputados, as comissões só
foram instaladas no fim de abril, quase três meses depois de iniciados os
trabalhos legislativos. Outras audiências públicas, mais curtas, acabariam
sendo realizadas em fevereiro no grupo de trabalho montado para o projeto.
O tema é daqueles contra o qual ninguém se
atreve a se insurgir. De 1,2 milhão de profissionais, o Conselho Federal de
Enfermagem calcula que quase 60 mil se contaminaram na linha de frente, uma
grande parte dos quais numa época em que não havia vacina. Com 871 óbitos, o
Brasil concentraria, segundo a entidade de trabalhadores do setor, um terço das
mortes de profissionais de enfermagem no mundo.
Os depoimentos colhidos na comissão deram
conta da falta de equipamento de proteção individual, do excesso de trabalho em
dupla jornada e da falta de treinamento. Isolados nos hospitais, sem poderem ir
para suas casas para não contaminar familiares nem levar de volta para os
hospitais o contato com o vírus em suas famílias e comunidades, muitos acabaram
mal acomodados nos hospitais, sem alimentação ou local de descanso adequados.
Mais da metade dos profissionais, segundo o conselho da categoria, foram
diagnosticados com sofrimento psíquico.
A Organização Mundial da Saúde estima que o
desgaste a que o trabalho é submetido leve, até 2030, à redução pela metade dos
27 milhões de trabalhadores que, no mundo todo, se dedicam à enfermagem. Para
evitar esse “apagão” de profissionais capacitados a cuidar da população
mundial, a OMS recomendou que os países adotassem políticas públicas destinadas
a melhorar as condições de trabalho da enfermagem.
Se não há na saúde pública ou privada quem
se insurja contra a adoção do piso salarial para a enfermagem, tampouco há quem
apresente até aqui alternativas factíveis para seu financiamento. Dados do
Dieese em mãos da Federação Nacional dos Enfermeiros, apresentados durante a
audiência pública, mostraram que a elevação do piso para a totalidade dos 1,2
milhão de profissionais do setor terá um impacto tanto para o setor privado,
que paga, em média, R$ 4 mil, quanto para o setor público.
Oito estados e o Distrito Federal já
estariam enquadrados, nove estados estariam próximos do piso e nove outros,
mais distantes. No setor privado, o impacto também se distingue entre aqueles
hospitais cuja receita vem, majoritariamente do SUS, e aqueles cujos repasses
são feitos pelos planos de saúde.
No primeiro caso, o melhor exemplo foi o do
município de Alanquer. No único hospital do município, 97% dos serviços são
prestados ao SUS e, por eles, a unidade é remunerada, segundo dados públicos
disponíveis na internet, com R$ 336 mil.
O dirigente da Confederação Nacional de
Saúde destrinchou o impacto do novo piso para uma unidade com nove enfermeiros
que se dividem em turnos de oito horas: “Só com isso [o piso] custaria 58 mil
reais. Para cada enfermeiro são 5 técnicos, totalizando 45 técnicos de
enfermagem nesse serviço, o que daria mais de R$ 203 mil. Só o pagamento do
piso salarial que está sendo pretendido - reconheço que é importante que nós o
valorizemos - custaria quase 80% das receitas, sobrando 21% para todo o resto”.
Por “resto” entendam-se materiais,
medicamentos, água, luz, além dos outros 50% da força de trabalho: médicos,
fisioterapeutas, assistentes sociais, psicólogos e trabalhadores da manutenção.
À pressão dessas entidades que dependem dos valores fixados nas tabelas do SUS
acresçam-se serviços como hemodiálise. O setor, impactado na pandemia pelo
quadro de insuficiência renal comum nos casos mais graves, depende, quase
integralmente, da enfermagem.
O depoimento do vice-presidente da
Associação Brasileira dos Centros de Diálise e Transplante, Yussif Junior,
acresceu à dramaticidade do quadro o impacto da inflação galopante. Dos 144 mil
pacientes de diálise do Brasil, 86% são atendidos pelo SUS, cuja tabela,
segundo informou, já estaria com uma defasagem de 46%.
Uma portaria de 2021 redimensionou o
atendimento aumentando em 25% o número de enfermeiros e técnicos de enfermagem
necessários para o serviço. Uma clínica só se viabilizaria com, pelo menos, 300
pacientes, o que restringe o número de municípios em condições de abrigar uma
unidade. Com isso, há uma concentração dos serviços de diálise, o que eleva o
custo para pacientes que precisam se deslocar para frequentá-los.
Se o custo para os hospitais que dependem,
quase integralmente, dos repasses do SUS é proibitivo, aqueles que auferem suas
receitas de uma parcela maior de planos de saúde repassarão os custos, o que
tampouco é uma saída de fácil equação.
Como o piso é nacional, a diferença de
preços entre as regiões tende a reduzir, aumentando o valor cobrado em regiões
em que a média salarial dos enfermeiros era mais baixa até a instituição do
piso. A situação levará a um misto de redução nas margens de lucro das empresas
e aumento no valor dos planos de saúde que hoje é estimado entre 15% e 20%.
Como mais da metade dos salários hoje tem reajuste abaixo da inflação, é
previsível que haja uma grande pressão por cancelamentos.
As empresas de planos de saúde sempre
tiveram poder de pressão sobre o Congresso, mas as mudanças nas regras do
financiamento da política impactou o jogo. Um parlamentar com estreito
relacionamento com essas empresas diz que um projeto como este dificilmente
teria andamento na época em que o financiamento privado era permitido.
A MP da Eletrobras demonstrou que essa
proibição não impediu que os lobbies das termelétricas avançasse. Mesmo nesse
setor, porém, ainda há parlamentares que não conseguiram transformar em espécie
os valores acordados, dado o estreitamento dos controles sobre as movimentações
financeiras. Com as empresas de plano de saúde a situação é mais restritiva
porque, como uma grande parte delas tem capital aberto em bolsa, a governança
dificulta a “lavagem” de eventuais acertos parlamentares.
Com isso, a saída se deslocou para a
compensação do erário a ser buscada tanto para o setor público quanto para o
privado. Entre as propostas surgidas estão o aumento de 3,5% na Contribuição
Financeira sobre a Exploração Mineral (CFEM). A ideia de acabar com a isenção
do ICMS sobre exportações esbarra na resistência a exportar imposto.
Para o setor privado, a ideia mais madura a
circular pelo Senado é a da desoneração da folha de pagamentos das
instituições. A medida, porém, enfrenta a resistência das entidades
filantrópicas, que já não recolhem impostos sobre a folha. O custo dessas
instituições, com a extensão do benefício para os hospitais privados,
equipararia os custos e colocaria em questão a viabilidade do serviço prestado
pelas entidades filantrópicas.
Ao longo da tramitação, na Câmara, não faltou quem propusesse tirar o financiamento do piso nacional da enfermagem das emendas de relator, o chamado “Orçamento secreto”, ou do fundão eleitoral de R$ 5 bilhões. As propostas não ecoaram e a bola do impasse hoje está com o Senado, Casa por onde começou a tramitar e para a qual voltou.
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