sexta-feira, 13 de maio de 2022

Flávia Oliveira: Sem direito à memória

O Globo

A Polícia Civil do Rio de Janeiro, às vésperas do 13 de Maio, destruiu o memorial que organizações sociais e famílias do Jacarezinho instalaram na comunidade no primeiro aniversário da maior chacina por intervenção de agentes da lei no estado. Como instrumento de demolição, usou o blindado conhecido como caveirão, recorrente nas incursões em favelas cariocas. Como justificativa, a acusação de apologia ao tráfico, sem respaldo de decisão judicial, necessária no Estado Democrático de Direito. Revitimizou os 27 civis mortos, tachados de traficantes; levou ao chão o nome do inspetor André Frias, morto em vão na operação contra aliciamento de menores e tráfico de drogas, nunca interrompidos; criminalizou associações comunitárias e defensores de direitos humanos envolvidos nos atos por justiça.

A Chacina do Jacarezinho deixou 28 mortos e caminha a passos largos para a impunidade. Já foram arquivados dez inquéritos relacionados a 24 vítimas; duas delas, segundo o próprio Ministério Público (MP-RJ), não tinham antecedentes criminais e foram alvejadas por acaso durante os confrontos. Dois casos foram denunciados à Justiça: num deles, dois policiais da Coordenadoria de Operações Especiais (Core) são réus pela morte de Omar Pereira da Silva; noutro, dois chefes do tráfico respondem pelo homicídio do policial André Frias. Na maioria dos casos, não foi possível cravar nem que houve execuções, como acusam moradores, nem disparos em legítima defesa, como alegam policiais.

O memorial aos mortos do Jacarezinho foi destruído cinco dias após a inauguração e menos de quatro meses depois do lançamento, pelo governador Cláudio Castro (PL), do programa Cidade Integrada, releitura das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). A nova política começou pela comunidade da Zona Norte e pela Muzema, favela da Zona Oeste dominada pela milícia, com promessa de atenção às demandas locais por serviços públicos, assistência social, formação profissional, trabalho e renda. Mas a ação da última quarta-feira sugere que a relação do governo fluminense com territórios populares segue pautada por truculência e falta de diálogo.

Aliado do presidente Jair Bolsonaro (PL), Castro é candidato à reeleição. Assumiu o Palácio Guanabara há pouco mais de um ano, após o impeachment de Wilson Witzel, o ex-juiz federal eleito governador sob a promessa de “atirar na cabecinha” de criminosos. Na gestão de Castro, organizações de direitos humanos têm denunciado alta incidência de confrontos armados e letalidade policial. O Instituto Fogo Cruzado contabilizou, de 1º de janeiro a 11 de maio deste ano, 1.254 tiroteios na Região Metropolitana do Rio, 407 dos quais durante intervenções policiais. As operações deixaram 188 mortos e 253 feridos. Onze de 16 chacinas (ocorrências com três ou mais óbitos) no Grande Rio se deram durante ações das forças de segurança; elas somaram 47 dos 63 mortos. Quarenta e oito agentes da lei foram baleados, 21 morreram. São as estatísticas de um modelo de segurança pública que só produz luto. Nas famílias das favelas, nos lares dos policiais.

O Observatório Cidade Integrada publicou nota condenando a violência contra populações em situação de vulnerabilidade. Organizações da sociedade civil — da Casa Fluminense ao CESeC, dos coletivos Maré Vive ao Fala Akari, do Instituto Marielle Franco à Associação Juízes para a Democracia — subscreveram. A ONG Justiça Global classificou a destruição do memorial às vítimas do Jacarezinho como ato explícito de racismo institucional do governo do Rio: “Não basta arrancarem nossas vísceras, querem também nos tirar o direito à memória. Não basta imporem sigilo aos autos, arquivarem despudoradamente os inquéritos, destroem também a marretadas o direito de toda uma comunidade de contar a sua história e de velar, uma vez mais, os seus mortos”.

As frases contundentes resumem a indignação contra um Estado que vitima e revitimiza corpos negros, pobres, favelados. Criminosos deveriam estar sujeitos ao devido processo legal, não à execução sumária; civis, acima de tudo, à proteção. Autoridades que homenageiam escravocratas e ditadores com monumentos e vias públicas negam aos enlutados pela violência homicida o espaço para lembrar seus mortos.

A cada ano, o Brasil contabiliza de 50 mil a 60 mil assassinatos, mais da metade são jovens de 15 a 29 anos, quase todos pretos, pardos, de baixa renda. São corpos enterrados em covas rasas de cemitérios que, exumados três anos depois, não deixam vestígio de existência. Memoriais como os do Jacarezinho são prova de vida. E manifestação da esperança de que brutalidade e arbítrio serão lembrados para não mais se repetirem. Tudo isso foi tirado dos familiares dos mortos na chacina pelo mesmo poder público que a provocou.

Ontem, véspera dos 134 anos da lei que aboliu a escravidão, um conjunto de partidos políticos (PT, PSOL, PSB, PCdoB, Rede, PV e PDT) protocolou no Supremo Tribunal Federal uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) contra a “violação sistemática dos direitos à vida, à saúde, à segurança e à alimentação digna da população negra”, com ênfase na letalidade decorrente da violência policial. As legendas reagiram à provocação da Coalizão Negra por Direitos, articulação de 250 organizações, coletivos e entidades do movimento negro, que há décadas denuncia o extermínio real e simbólico. Com razão.

 

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