O Globo
A Polícia Civil do Rio de Janeiro, às
vésperas do 13 de Maio, destruiu o memorial que organizações sociais e famílias
do Jacarezinho instalaram na comunidade no primeiro aniversário da maior
chacina por intervenção de agentes da lei no estado. Como instrumento de
demolição, usou o blindado conhecido como caveirão, recorrente nas incursões em
favelas cariocas. Como justificativa, a acusação de apologia ao tráfico, sem
respaldo de decisão judicial, necessária no Estado Democrático de Direito.
Revitimizou os 27 civis mortos, tachados de traficantes; levou ao chão o nome
do inspetor André Frias, morto em vão na operação contra aliciamento de menores
e tráfico de drogas, nunca interrompidos; criminalizou associações comunitárias
e defensores de direitos humanos envolvidos nos atos por justiça.
A Chacina do Jacarezinho deixou 28 mortos e caminha a passos largos para a impunidade. Já foram arquivados dez inquéritos relacionados a 24 vítimas; duas delas, segundo o próprio Ministério Público (MP-RJ), não tinham antecedentes criminais e foram alvejadas por acaso durante os confrontos. Dois casos foram denunciados à Justiça: num deles, dois policiais da Coordenadoria de Operações Especiais (Core) são réus pela morte de Omar Pereira da Silva; noutro, dois chefes do tráfico respondem pelo homicídio do policial André Frias. Na maioria dos casos, não foi possível cravar nem que houve execuções, como acusam moradores, nem disparos em legítima defesa, como alegam policiais.
O memorial aos mortos do Jacarezinho foi
destruído cinco dias após a inauguração e menos de quatro meses depois do
lançamento, pelo governador Cláudio Castro (PL), do programa Cidade Integrada,
releitura das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). A nova política começou
pela comunidade da Zona Norte e pela Muzema, favela da Zona Oeste dominada pela
milícia, com promessa de atenção às demandas locais por serviços públicos,
assistência social, formação profissional, trabalho e renda. Mas a ação da
última quarta-feira sugere que a relação do governo fluminense com territórios
populares segue pautada por truculência e falta de diálogo.
Aliado do presidente Jair Bolsonaro (PL),
Castro é candidato à reeleição. Assumiu o Palácio Guanabara há pouco mais de um
ano, após o impeachment de Wilson Witzel, o ex-juiz federal eleito governador
sob a promessa de “atirar na cabecinha” de criminosos. Na gestão de Castro,
organizações de direitos humanos têm denunciado alta incidência de confrontos
armados e letalidade policial. O Instituto Fogo Cruzado contabilizou, de 1º de
janeiro a 11 de maio deste ano, 1.254 tiroteios na Região Metropolitana do Rio,
407 dos quais durante intervenções policiais. As operações deixaram 188 mortos
e 253 feridos. Onze de 16 chacinas (ocorrências com três ou mais óbitos) no
Grande Rio se deram durante ações das forças de segurança; elas somaram 47 dos
63 mortos. Quarenta e oito agentes da lei foram baleados, 21 morreram. São as
estatísticas de um modelo de segurança pública que só produz luto. Nas famílias
das favelas, nos lares dos policiais.
O Observatório Cidade Integrada publicou
nota condenando a violência contra populações em situação de vulnerabilidade.
Organizações da sociedade civil — da Casa Fluminense ao CESeC, dos coletivos
Maré Vive ao Fala Akari, do Instituto Marielle Franco à Associação Juízes para
a Democracia — subscreveram. A ONG Justiça Global classificou a destruição do
memorial às vítimas do Jacarezinho como ato explícito de racismo institucional
do governo do Rio: “Não basta arrancarem nossas vísceras, querem também nos
tirar o direito à memória. Não basta imporem sigilo aos autos, arquivarem
despudoradamente os inquéritos, destroem também a marretadas o direito de toda
uma comunidade de contar a sua história e de velar, uma vez mais, os seus
mortos”.
As frases contundentes resumem a indignação
contra um Estado que vitima e revitimiza corpos negros, pobres, favelados.
Criminosos deveriam estar sujeitos ao devido processo legal, não à execução
sumária; civis, acima de tudo, à proteção. Autoridades que homenageiam
escravocratas e ditadores com monumentos e vias públicas negam aos enlutados
pela violência homicida o espaço para lembrar seus mortos.
A cada ano, o Brasil contabiliza de 50 mil
a 60 mil assassinatos, mais da metade são jovens de 15 a 29 anos, quase todos
pretos, pardos, de baixa renda. São corpos enterrados em covas rasas de
cemitérios que, exumados três anos depois, não deixam vestígio de existência.
Memoriais como os do Jacarezinho são prova de vida. E manifestação da esperança
de que brutalidade e arbítrio serão lembrados para não mais se repetirem. Tudo
isso foi tirado dos familiares dos mortos na chacina pelo mesmo poder público
que a provocou.
Ontem, véspera dos 134 anos da lei que
aboliu a escravidão, um conjunto de partidos políticos (PT, PSOL, PSB, PCdoB,
Rede, PV e PDT) protocolou no Supremo Tribunal Federal uma Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) contra a “violação sistemática
dos direitos à vida, à saúde, à segurança e à alimentação digna da população
negra”, com ênfase na letalidade decorrente da violência policial. As legendas
reagiram à provocação da Coalizão Negra por Direitos, articulação de 250
organizações, coletivos e entidades do movimento negro, que há décadas denuncia
o extermínio real e simbólico. Com razão.
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