sexta-feira, 13 de maio de 2022

Dora Kramer: Só no salto alto

Revista Veja

Dianteira faz o PT repetir a lógica do venha a nós, e ao reino dos aliados acena muito pouco ou quase nada

Houve um tempo em que as forças do centro à esquerda nem discutiam sobre a conveniência de determinadas alianças se o plano era derrotar um inimigo comum. No caso, a ditadura. Um episódio emblemático e muito pouco lembrado aconteceu em 1978, quando Paulo Maluf ganhou a convenção da Arena derrotando Laudo Natel, indicado pelo general-­presidente Ernesto Geisel para governador biônico de São Paulo.

Hoje parece estranho, mas na época a vitória de Maluf foi festejada como uma derrota do regime militar. Foi nessa lógica que se construiu uma grande aliança para empurrar a ditadura ladeira abaixo nas batalhas da anistia e das Diretas Já. Foi por esse raciocínio que caciques da Arena, já então PDS, fundaram a Frente Liberal para se juntar à campanha de Tancredo Neves para derrotar, no Colégio Eleitoral de 1985, aquele mesmo Maluf de sete anos antes.

Só o PT não embarcou naquela onda e ainda tratou de expulsar os deputados do partido que votaram em Tancredo. Marcou posição, tentou marcar de novo em 1988 ao se recusar de início para depois aceitar assinar a nova Constituição.

Foi o único partido a não participar da ampla aliança em torno do governo Itamar Franco após o impeachment de Fernando Collor. A então deputada Luiza Erundina aceitou ser ministra da Administração, foi punida com suspensão de um ano e acabou trocando o PT pelo PSB.

Nessa toada sectária o partido imprimiu clareza à sua atuação, mas perdeu as três eleições presidenciais que disputou, em 1989, 1994 e 1998, só chegando à vitória em 2002, quando modulou o discurso e a política de alianças com a incorporação do PL à chapa na figura do empresário-senador José Alencar na Vice-­Presidência.

Agora, vinte anos depois, o PT tenta reeditar a lógica da unidade geral e irrestrita para derrotar Jair Bolsonaro e voltar ao poder. Reincorpora o conceito de amplitude, mas na prática atua com a estreiteza de antigamente. Não faz concessões. Agora não mais pela necessidade de construir e consolidar sua marca, mas devido à dianteira nas pesquisas e a ausência de competidores no campo da oposição a Bolsonaro.

Luiz Inácio da Silva diz ter ciência de que a eleição não está ganha, mas age exatamente como se tivesse certeza de que está no papo. Nas atitudes dele o “venha a nós” impera e nada ou muito pouco acena ao reino dos aliados e potenciais apoiadores a ser conquistados. Isso se aplica aos políticos e ao eleitorado ainda indeciso.

À faixa dos que ainda vagam entre os líderes das pesquisas, pois resistem tanto a Lula quanto a Bolsonaro, o ex-presidente não tem fornecido bom material para atração. Ao contrário, a série de tropeços recentes o mostra descuidado, crente de que nada abala a sua dianteira a ponto de se recusar a revelar seus planos para a economia.

No campo político repete a conduta presunçosa. A aliança com Geraldo Alckmin até agora só trouxe vantagem para o PT: a sinalização ao centro por ora meramente simbólica porque não correspondeu a compromisso algum em termos de programa de governo e a retirada de Alckmin da disputa pelo Palácio dos Bandeirantes. Entre petistas celebra-se o fato de o ex-tucano ter aderido praticamente sozinho, sem peso político para influir na condução da Presidência em caso de vitória.

E o que dizer do tratamento reservado a Marina Silva? O partido dela, Rede Sustentabilidade, entrou na aliança. Marina, contudo, não firmou apoio, Lula se disse surpreso com essa resistência e ela rebateu dizendo-se surpresa com a surpresa dele. Evidente, pois em 2014 foi combatida de maneira torpe à base de mentiras, o que deteriorou de vez uma relação seriamente machucada desde que Marina deixou o Ministério do Meio Ambiente dizendo que preferiria perder o pescoço a perder o juízo. Merecia ao menos um gesto, mas a soberba impede Lula de fazer.

Ciro Gomes começa a sofrer uma ofensiva para desistir. Não mediante proposta de pacificação, mas com tentativa de atrair os candidatos do PDT a governos estaduais, fazendo com que abandonem a candidatura de Ciro. Ou seja, não é no jeito, é na força.

O PT quer reeditar o ambiente de frente ampla contra o inimigo comum que tantas batalhas venceu no processo de derrocada do regime militar. É um desejo. De difícil realização se a ele não se incorpora o conceito da reciprocidade, do desprendimento e da prática da mão dupla.

Publicado em VEJA de 18 de maio de 2022, edição nº 2789

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