quinta-feira, 13 de março de 2025

O câmbio e a inflação de alimentos - Benito Salomão

Correio Braziliense

Ainda é prematuro prever os impactos das medidas anunciadas pelo governo. Mas vale o alerta: quando produz pressões sobre a taxa de câmbio, o estímulo à importação para reduzir preços domésticos pode gerar efeitos opostos

Desde a saída da pandemia, o Brasil vem apresentando um desempenho insatisfatório em termos de inflação. Com exceção de 2023, quando houve uma curta convergência do IPCA para o centro da meta, todos os anos que sucederam desde 2021 performaram com o estouro do limite superior. A depender dos dados em dezembro de 2025, o país terá estourado a meta de inflação por cinco anos, algo inédito nestes 25 anos de Regime de Metas de Inflação (RMI).

Aquela desinflação de 2023 esteve associada a dois episódios correlacionados entre si: i) um choque reputacional positivo após a antecipação do Arcabouço Fiscal (NAF), inicialmente esperada para o segundo semestre de 2023, sendo antecipado para abril daquele ano. À primeira vista, esse pode parecer um detalhe sem importância, mas não é, serviu para sinalizar aos agentes econômicos a disposição do governo, já nos seus primeiros meses, em preservar os fundamentos macroeconômicos. ii) uma aguda apreciação nominal do câmbio que operou em 2023 abaixo dos R$ 5.

Movimentos no câmbio, em ambas as direções, têm elevado potencial de repasses aos preços domésticos, isto é, chamado na literatura de efeito passthrough. Em artigo empírico aceito para publicação recentemente, eu e a professora Thaís Guimarães, também do Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (IERI-UFU), demonstramos que tais repasses são assimétricos. Em se tratando do IPCA, os repasses inflacionários de depreciações cambiais são mais intensos do que os repasses deflacionários das apreciações. Particularmente, os preços livres e os de bens comercializáveis (entre eles, os preços de gêneros alimentícios) são bastante sensíveis às flutuações da taxa de câmbio.

Recentemente, ficou escancarada a preocupação do governo com os preços dos alimentos, tendo sido anunciadas medidas para "barretear" o preço de inúmeros itens. Entre elas, destaca-se a desoneração de importações de produtos como café, carne, milho, azeite, entre outros. O canal de transmissão pelo qual o governo pretende atingir os preços domésticos dos alimentos é o das importações. Em suma, se o preço doméstico de um item está relativamente elevado, o estímulo às importações impõe concorrência com produtos importados e queda nos preços.

Intuitivamente, a estratégia pode fazer sentido. Porém, há dois elementos prévios que devem ser observados para o seu sucesso: i) para que uma desoneração de importações seja bem-sucedida, é preciso ser verificada uma posição confortável no saldo de Transações Correntes (TCs) do Balanço de Pagamentos (BP). Não é isso que se verifica nos dados, entre janeiro e dezembro de 2024, o deficit em TCs saltou de 0,9% para 2,5% do PIB. Isso é, a posição em TCs da economia brasileira se deteriora rapidamente. ii) é preciso que tais medidas sejam neutras em termos dos impactos sobre a taxa de câmbio. Em outras palavras, estimular importações em meio a uma piora verificada do saldo em TCs pode produzir depreciações adicionais sobre o câmbio, o que geraria repasses para os preços domésticos. Resumindo, o efeito final sobre preços domésticos, particularmente o de alimentos, pode ser o de um encarecimento.

O fato é que a taxa de inflação mensurada pelo IPCA vem performando sistematicamente acima da meta desde a saída da pandemia. Em 2024, o IPCA acumulado encerrou dezembro em 4,83%, acima do limite superior de 4,5%. Entretanto, o problema não se resume às taxas de inflação acima da meta por um longo período. A inflação de nível também preocupa. Imagine um produto X cujo preço no período t é R$ 10. Se no período seguinte (t + 1) o preço desse produto se eleva para R$ 20, a taxa de inflação de X entre t e t + 1 foi de 100%. Suponha que em t + 2 o preço do produto X permaneça em R$ 20, a taxa de inflação acumulada entre t + 1 e t + 2 agora será de 0% — isto é, a taxa de inflação foi estabilizada, mas o nível do preço de X permanece elevado.

A política monetária no Brasil submetida ao RMI persegue uma meta de inflação em taxa. De forma que, se a meta é alcançada, a política monetária se acomoda independentemente de onde se estabilize o nível dos preços. Reduzir os níveis de preços, particularmente os de alimentos, deve passar por apreciações na taxa de câmbio. A boa notícia é que esse dólar em R$ 5,80 não reflete os fundamentos da economia brasileira, que opera com um resultado primário próximo de 0% e uma política monetária no campo contracionista com amplo diferencial entre as taxas de juros domésticas e internacionais.

Ainda é prematuro prever os impactos das medidas anunciadas sobre o deficit em TCs e, consequentemente, sobre o câmbio e os preços domésticos. Mas vale o alerta: as medidas de estímulos às importações que visam a redução dos preços domésticos podem gerar os efeitos opostos quando produzem pressões sobre a taxa de câmbio. A eliminação de ruídos políticos que produziram, em 2024, impactos expectacionais absorvidos pelo câmbio pode auxiliar em muito nesse processo de desinflação da economia brasileira.

 

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