quinta-feira, 13 de março de 2025

Por que os EUA se desindustrializaram - Jorge Arbache

Valor Econômico

Para a política do reshoring se sustentar, serão necessárias medidas mais agressivas de subsídios, discriminação e proteção, o que poderá empurrar a economia americana para um círculo vicioso de baixa inovação e baixa competitividade

Parte da narrativa dos recentes governos dos Estados Unidos para justificar políticas protecionistas, discriminatórias e de subsídios que afrontam regras do comércio internacional é que o país estaria se desindustrializando em razão do modelo econômico implantado pelo governo chinês.

O presidente Donald Trump tem sido particularmente enfático: “Perdemos milhões de empregos no setor de manufatura por causa da China”; “Eles tomaram nossas fábricas, tomaram nosso dinheiro”; “Não podemos continuar a permitir que a China estupre nosso país, e é isso que eles estão fazendo. É o maior roubo da história do mundo”.

As estatísticas parecem dar suporte aos políticos. Em 1980, a participação da indústria no Produto Interno Bruto (PIB) americano foi de 21,2% e no emprego de 20,1%. Em 2023, os números tinham caído para 10,1% e 8,4%, respectivamente.

Mas um olhar mais cuidadoso revela uma história diferente. Nos anos 1980, coordenados com o governo, grandes conglomerados industriais americanos adotaram uma política de transferência de plantas industriais para a China, que então iniciava a sua jornada de transformação econômica e buscava investimentos e tecnologias. Houve uma combinação de interesses entre os dois lados, que levaria a uma das mais espetaculares mudanças econômicas contemporâneas. Os EUA entrariam com capital, máquinas, tecnologias, modelos de negócios e gestão, e a China entraria com mão de obra, então extremamente abundante e barata, e condições regulatórias, logísticas e de infraestrutura bastante vantajosas.

O modelo mais que atendeu aos interesses dos investidores. Estudos de caso mostraram reduções médias de custos operacionais entre 30% e 50% e, em alguns casos, reduções muito maiores. Estima-se que as margens operacionais médias e os retornos médios anuais das ações das empresas que adotaram a estratégia foram, respectivamente, 15% e 7% maiores do que os de empresas similares do mesmo setor que não seguiram aquela estratégia.

A redução de custos e o aumento da escala de produção permitiram que empresas como Apple, Nike, Dell, HP e tantas outras alcançassem o mercado global e se tornassem líderes quase imbatíveis de seus setores, algo impensável se a produção fosse nos EUA. Os produtos saíam das fábricas como “Made in China”, mas seria mais acurado saírem como “Made by the United States in China”. Diante do enorme sucesso empresarial, conglomerados europeus e japoneses também abraçaram a estratégia, que viria a ser conhecida como “offshoring”.

A política do offshoring, combinada com mudanças tecnológicas, como contêineres e internet, flexibilizações regulatórias e financeiras, entre outras, catapultaria para as alturas o modelo de cadeias globais de valor liderado pelos EUA.

Mais adiante, o país levaria esse modelo para uma segunda etapa, desta vez, focado em setores específicos para atender especialmente ao próprio mercado americano. Assim surgiriam as cadeias regionais de valor da América do Norte. O caso mais conhecido do modelo é o do setor automobilístico, que desenvolveu uma sofisticada cadeia de valor envolvendo os três países do norte no âmbito do então acordo comercial Nafta.

A política de cadeias internacionais de valor transformou profundamente a indústria americana. Em vez de plantas industriais, os EUA passaram a se concentrar em serviços e na gestão de cadeias de valor. Em vez de peças, partes e montagem, a ênfase passou para P&D, softwares, patentes, design, marcas, marketing, vendas, financiamento, seguros e tantos outros serviços que são parte crítica das modernas cadeias de valor e que são o filé-mignon do comando, controle e retorno do capital.

É improvável que o reshoring recupere a indústria manufatureira americana em um horizonte previsível

Pense no iPhone. Embora o telefone seja embalado e despachado para os mercados globais desde a China, estima-se que esse país fique com entre 5% e 10% do valor adicionado de cada telefone. No caso do México, que é um hub de exportação de automóveis com várias dezenas de grandes plantas, estimativas apontam que o país responderia por até 15% do valor final de cada carro que envia para os EUA. Tanto em um caso quanto no outro, a maior parte da agregação de valor vai para o maestro da cadeia de valor.

Portanto, a indústria americana encolheu, em boa parte, como resultado de políticas corporativas de otimização de custos e maximização de lucros e da busca por alcance global. Isso nada tem a ver com “roubo” de empregos.

Embora a típica família americana tenha se beneficiado da enxurrada de manufaturas baratas importadas, a política de offshoring prejudicou setores da classe média. A perda de empregos industriais foi especialmente marcante em estados críticos para as eleições majoritárias, o que teria implicações políticas importantes. O setor de serviços voltados para a indústria pouco absorveu os trabalhadores que perderam os seus empregos, pois não tinham a qualificação e o conhecimento específicos.

A crescente liderança da China em vários setores industriais e os problemas de suprimentos durante a pandemia somaram-se às dores da desindustrialização para dar origem, poucos anos atrás, à estratégia política populista do “reshoring”, qual seja, trazer de volta as plantas industriais que estavam na China. As promessas eram recuperar empregos “roubados” e conter a China.

Mas é improvável que o reshoring recupere a indústria manufatureira americana em um horizonte previsível. Empresas que fecham as portas na China para reabrirem nos EUA o fazem com uso intensivo de robôs e IA. Custos trabalhistas mais elevados e carência de infraestruturas, ecossistema industrial e fornecedores de peças e partes deverão tornar a tarefa mais árdua. As políticas antimigratórias e as tarifas comerciais adicionarão ainda mais amargor a esse caldo.

Para a política do reshoring se sustentar, serão necessárias medidas mais agressivas de subsídios, discriminação e proteção, o que poderá empurrar a economia americana para um círculo vicioso de baixa inovação e baixa competitividade. Não seria exagero prever que tudo isso levará a mais guerras comerciais e a frustrações populares.

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