Valor Econômico
Para a política do reshoring se sustentar, serão necessárias medidas mais agressivas de subsídios, discriminação e proteção, o que poderá empurrar a economia americana para um círculo vicioso de baixa inovação e baixa competitividade
Parte da narrativa dos recentes governos dos
Estados Unidos para justificar políticas protecionistas, discriminatórias e de
subsídios que afrontam regras do comércio internacional é que o país estaria se
desindustrializando em razão do modelo econômico implantado pelo governo
chinês.
O presidente Donald Trump tem sido
particularmente enfático: “Perdemos milhões de empregos no setor de manufatura
por causa da China”; “Eles tomaram nossas fábricas, tomaram nosso dinheiro”;
“Não podemos continuar a permitir que a China estupre nosso país, e é isso que
eles estão fazendo. É o maior roubo da história do mundo”.
As estatísticas parecem dar suporte aos políticos. Em 1980, a participação da indústria no Produto Interno Bruto (PIB) americano foi de 21,2% e no emprego de 20,1%. Em 2023, os números tinham caído para 10,1% e 8,4%, respectivamente.
Mas um olhar mais cuidadoso revela uma
história diferente. Nos anos 1980, coordenados com o governo, grandes
conglomerados industriais americanos adotaram uma política de transferência de
plantas industriais para a China, que então iniciava a sua jornada de
transformação econômica e buscava investimentos e tecnologias. Houve uma
combinação de interesses entre os dois lados, que levaria a uma das mais
espetaculares mudanças econômicas contemporâneas. Os EUA entrariam com capital,
máquinas, tecnologias, modelos de negócios e gestão, e a China entraria com mão
de obra, então extremamente abundante e barata, e condições regulatórias,
logísticas e de infraestrutura bastante vantajosas.
O modelo mais que atendeu aos interesses dos
investidores. Estudos de caso mostraram reduções médias de custos operacionais
entre 30% e 50% e, em alguns casos, reduções muito maiores. Estima-se que as
margens operacionais médias e os retornos médios anuais das ações das empresas
que adotaram a estratégia foram, respectivamente, 15% e 7% maiores do que os de
empresas similares do mesmo setor que não seguiram aquela estratégia.
A redução de custos e o aumento da escala de
produção permitiram que empresas como Apple, Nike, Dell, HP e tantas outras
alcançassem o mercado global e se tornassem líderes quase imbatíveis de seus
setores, algo impensável se a produção fosse nos EUA. Os produtos saíam das
fábricas como “Made in China”, mas seria mais acurado saírem como “Made by the
United States in China”. Diante do enorme sucesso empresarial, conglomerados
europeus e japoneses também abraçaram a estratégia, que viria a ser conhecida como
“offshoring”.
A política do offshoring, combinada com
mudanças tecnológicas, como contêineres e internet, flexibilizações
regulatórias e financeiras, entre outras, catapultaria para as alturas o modelo
de cadeias globais de valor liderado pelos EUA.
Mais adiante, o país levaria esse modelo para
uma segunda etapa, desta vez, focado em setores específicos para atender
especialmente ao próprio mercado americano. Assim surgiriam as cadeias
regionais de valor da América do Norte. O caso mais conhecido do modelo é o do
setor automobilístico, que desenvolveu uma sofisticada cadeia de valor
envolvendo os três países do norte no âmbito do então acordo comercial Nafta.
A política de cadeias internacionais de valor
transformou profundamente a indústria americana. Em vez de plantas industriais,
os EUA passaram a se concentrar em serviços e na gestão de cadeias de valor. Em
vez de peças, partes e montagem, a ênfase passou para P&D, softwares,
patentes, design, marcas, marketing, vendas, financiamento, seguros e tantos
outros serviços que são parte crítica das modernas cadeias de valor e que são o
filé-mignon do comando, controle e retorno do capital.
É improvável que o reshoring recupere a
indústria manufatureira americana em um horizonte previsível
Pense no iPhone. Embora o telefone seja
embalado e despachado para os mercados globais desde a China, estima-se que
esse país fique com entre 5% e 10% do valor adicionado de cada telefone. No
caso do México, que é um hub de exportação de automóveis com várias dezenas de
grandes plantas, estimativas apontam que o país responderia por até 15% do
valor final de cada carro que envia para os EUA. Tanto em um caso quanto no
outro, a maior parte da agregação de valor vai para o maestro da cadeia de
valor.
Portanto, a indústria americana encolheu, em
boa parte, como resultado de políticas corporativas de otimização de custos e
maximização de lucros e da busca por alcance global. Isso nada tem a ver com
“roubo” de empregos.
Embora a típica família americana tenha se
beneficiado da enxurrada de manufaturas baratas importadas, a política de
offshoring prejudicou setores da classe média. A perda de empregos industriais
foi especialmente marcante em estados críticos para as eleições majoritárias, o
que teria implicações políticas importantes. O setor de serviços voltados para
a indústria pouco absorveu os trabalhadores que perderam os seus empregos, pois
não tinham a qualificação e o conhecimento específicos.
A crescente liderança da China em vários
setores industriais e os problemas de suprimentos durante a pandemia somaram-se
às dores da desindustrialização para dar origem, poucos anos atrás, à
estratégia política populista do “reshoring”, qual seja, trazer de volta as
plantas industriais que estavam na China. As promessas eram recuperar empregos
“roubados” e conter a China.
Mas é improvável que o reshoring recupere a
indústria manufatureira americana em um horizonte previsível. Empresas que
fecham as portas na China para reabrirem nos EUA o fazem com uso intensivo de
robôs e IA. Custos trabalhistas mais elevados e carência de infraestruturas,
ecossistema industrial e fornecedores de peças e partes deverão tornar a tarefa
mais árdua. As políticas antimigratórias e as tarifas comerciais adicionarão
ainda mais amargor a esse caldo.
Para a política do reshoring se sustentar, serão necessárias medidas mais agressivas de subsídios, discriminação e proteção, o que poderá empurrar a economia americana para um círculo vicioso de baixa inovação e baixa competitividade. Não seria exagero prever que tudo isso levará a mais guerras comerciais e a frustrações populares.
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