domingo, 5 de outubro de 2025

A unanimidade passo a passo. Por Míriam Leitão

O Globo

O aumento da faixa de isenção do IR trará dividendos políticos ao governo, mas ele fez por merecer, mostrou competência no embate

O governo Lula terá dividendos políticos com o aumento da faixa de isenção do Imposto de Renda, e é natural que tenha. O projeto foi bem desenhado do ponto de vista da engenharia fiscal, o governo mostrou capacidade de virar o jogo na comunicação, resistiu a uma onda muito forte de críticas, venceu os grupos contrários e negociou politicamente de forma hábil. Venceu um jogo democrático, no qual usou as armas que devem ser usadas. Levando-se tudo isso em conta, nada mais normal que fique com os bônus. Ainda falta aprovar no Senado, mas a esperança é de que seja mais fácil.

No fim de novembro de 2024, quando o ministro Fernando Haddad anunciou que a proposta estava sendo estudada, o mundo caiu no mercado financeiro. O dólar bateu em R$ 6, igualando ao pior momento de incerteza na pandemia. A bolsa despencou. As críticas dos especialistas em contas públicas foram ferozes. Alguns cálculos do rombo pela renúncia superavam os R$ 100 bilhões. Seria o fim do ajuste fiscal e o começo do fim do governo, para alguns analistas.

Não se falou no assunto durante meses. O projeto parecia ter sido derrotado pela péssima recepção da ideia. Em março, o Ministério da Fazenda apresentou o PL pronto. Havia um pulo do gato que melhorava a qualidade da proposta e reduzia o impacto fiscal. Em vez de o valor de isenção beneficiar todos os contribuintes, inclusive os de renda maior, focava unicamente em quem tinha renda de até R$ 5 mil. No Brasil, sempre se beneficiou todo mundo, ao aumentar a faixa de isenção. Se fosse adotado agora, significaria que para o contribuinte com renda de R$ 50 mil, por exemplo, os primeiros R$ 5 mil ficariam isentos. O texto fez diferente. Focou nos que ganham R$ 5 mil. Por razões de técnica tributária quem ganha até R$ 7.350 pagará menos do que paga hoje. Assim, reduziu-se em parte a regressividade do Imposto de Renda e diminui muito o impacto fiscal da isenção. A perda de arrecadação ficou em R$ 25 bilhões.

A segunda sabedoria foi a de compensar esta perda elevando o imposto de quem tem renda não tributada ou pouco tributada. Não é exatamente quem tem salário alto, porque para quem recolhe na fonte a alíquota é de 27,5%. O alvo, portanto, é quem recebe esse valor em dividendos ou outras rendas que escapam da tributação. Ao concentrar a conta nesse grupo, o governo estava de novo diminuindo a distorção na estrutura tributária brasileira.

O projeto era sólido do ponto de vista técnico, começou a ser entendido pelos especialistas, mesmo aqueles mais avessos a concordar com o atual governo. Mas este é um tema árido. Foi feita então uma comunicação que tornava mais fácil a compreensão, explicando que se buscava justiça tributária, isentando-se a base e mandando a conta para a cobertura. A crítica foi que o governo estava jogando pobres contra ricos, como se estivesse inventando agora a divisão que há 500 anos cinde este país desigual.

A oposição não queria aprovar o projeto, até porque a mesma promessa de campanha havia sido feita por Jair Bolsonaro, em 2018. Ele não cumpriu. A oposição acusou o governo de ter mania de taxar. O problema é que a ideia de cobrar ao menos 10% de quem tem renda alta, e não paga nem esse mínimo, enfraquecia o argumento contrário. Em números, 141 mil pessoas pagarão Imposto de Renda para que 10 milhões de brasileiros deixem de pagar.

A relatoria foi entregue a Arthur Lira e por algum tempo ficou parecendo que o tema seria empurrado com a barriga até não poder mais ter efeito em 2026. Foi quando o Senado se movimentou e a Comissão de Assuntos Econômicos votou a favor de uma proposta parecida. Isso logo depois de a Câmara ter passado pelo vexame de aprovar a PEC da Blindagem, que foi enxovalhada em praça pública e enterrada pelos senadores.

O projeto acabou aprovado por unanimidade na Câmara. A comemoração promete ser curta, porque semana que vem pode ser derrubada, ou caducar, a Medida Provisória que aumenta imposto das Bets, fintechs grandes e tributa títulos financeiros isentos ou incentivados. É outro capítulo da mesma história de buscar uma distribuição mais justa dos impostos, mas contra essa MP os lobbies estão fortes. O governo já sabe que só consegue aprovar se fizer muitas concessões. Justiça tributária é um caminho longo. De vez em quando o Brasil dá um passo.

 

Nenhum comentário: