Folha de S. Paulo
Atordoada, a sociedade pós-civil (não regida
pelo capital e diversa) disse basta à normalização da canalhice
Equinócio da primavera foi marcado por
manifestações em 27 capitais brasileiras contra a PEC da Blindagem
Fenômeno astronômico, o equinócio assinala a variação dos raios solares nas estações do ano. Este ano, a véspera do equinócio da primavera teve uma marca simbólica: o povo foi às ruas em 27 capitais, com tamanho vigor cívico que ajudou a enterrar a PEC da Blindagem no Congresso. No Rio e em São Paulo, as multidões equivaliam, em números, às mesmas que vinham sendo mobilizadas por bolsonaristas. Mas a diferença escapa às gavetas de esquerda e direita.
É que uma fração significativa da sociedade
sempre concebeu política, para além de estreitezas ideológicas, como arte de
preencher um vazio com palavras e propostas. Se a política assim não se cumpria
no poder de Estado, ao menos praticava o pudor retórico do disfarce. Um mote
como "rouba, mas faz", aplicado a um incumbente, escandalizava não
tanto pelo peculato, já normalizado, e sim pelo transbordamento do excesso, a
falta de vergonha.
Vive-se um tempo, entretanto, em que o vazio
constitui a política: de ideias, de palavras com sentido, o nada do caos. É a
porta aberta à corrupção, ao moralismo fascista, à impunidade para criminosos e
aos avanços obscenos, como a
famigerada PEC da Blindagem, primeiro passo para a transformação do
país em narcoestado. Até semanas atrás, disso eram cúmplices as multidões de
extremistas que enchiam ruas, em meio a convocações online para a violência.
De repente, porém, talvez o contraste do bom
ânimo equinocial com o excesso das chantagens de deputados e das tarifas chantagistas,
acolhidas por uma bandeira estrangeira desfraldada, despertou o sentimento de
brasilidade ativa. Não foi a sociedade civil institucionalizada, mas um choque
de realidade. Atordoada pela degradação da sociedade política, a sociedade
"pós-civil" (não regida pelo capital e diversa, sem paralisia
identitária) disse "basta" à normalização da canalhice. Uma
estratégia sensível, transpolítica.
Afetos reais convergem para a brasilidade,
uma epifania do povo diverso, como modo subjetivo de ação. Um possível
"saber manejar sonhos e catalisar energia" (Marina Silva). Ausente
nos Poderes, comparece na música, no audiovisual, nas periferias criativas e no
segmento social preocupado com ética de futuro, que contempla a cadeia
geracional, os filhos. Foi sinergia de espírito do tempo com responsabilidade,
mas uma reação circunstancial que fica à espera uma organização cívica estável.
De todo modo, esse povo de agora, movido pelo
sentimento de indignação, distingue-se da turba. Essa não é povo nenhum, é
massa nebulosa, fabricada pelas redes a partir do acúmulo de informação sobre
"usuários", foco de emoções instantâneas. Manufatura da extrema
direita antinacional.
Sentimento é emoção lúcida. Não vem do
mercado, mas de representações sociais dos afetos. Sua agência entre nós é a
cultura. Com os artistas, nas ruas, as massas despertas tornam-se,
transpoliticamente, povo. E povo se descreve como um sujeito coletivo autorizado
a ecoar o poeta e dirigente angolano Agostinho Neto: "As minhas mãos
plantaram pedras/ nos alicerces do mundo".
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