O Globo
Hegseth frisou que a missão militar é
‘desatar as mãos dos nossos combatentes para intimidar, desmoralizar, caçar e
matar’
Ninguém precisou jurar nada em Quantico. Pelo
menos não de público. Os 800 oficiais de alta patente convocados inopinadamente
à base de Fuzileiros Navais pelo ministro da Guerra americano, Pete Hegseth,
puderam fazer cara de paisagem. Nada que lembrasse o famoso juramento pessoal
exigido de cada integrante das Forças Armadas alemãs em agosto de 1934,
prenunciando a hecatombe que se seguiu:
— Faço o sagrado juramento de que prestarei
obediência incondicional a Adolf Hitler, Führer do Reich e do povo alemão, Comandante
Supremo da Wehrmacht.
A imposição de 90 anos atrás, etapa crucial para a nazificação do aparato militar germânico, estabeleceu o fatídico vínculo rijo entre Hitler e o estamento. A lealdade ao país e à sua base constitucional foi transmutada em fidelidade direta ao líder único. Recusar o juramento passou a ser crime grave, e a obediência ao Führer precisava ser irrestrita — até para cometer os crimes de guerra que se seguiriam.
Em Quantico, sentados no auditório feito colegiais
ouvindo palestra que vale nota no final do ano, generais e almirantes
multicondecorados responderam ao que ouviram com polido aplauso ao final. Nada
lhes foi exigido de forma explícita, além de perder peso, cortar cabelo e barba
e ser macho. Mesmo assim, fica uma baita esquisitice no ar.
— Chega de regras de engajamento
politicamente corretas e excessivamente restritivas — comunicou Hegseth.
Ele frisou que a missão militar da era
trumpista é “desatar as mãos dos nossos combatentes para intimidar,
desmoralizar, caçar e matar os inimigos” e que considerava frouxo o “etos
guerreiro” das Forças Armadas atuais, apegadas a “regras de engajamento
estúpidas” para quem vai à guerra. Esqueceu que a Convenção de Genebra e as
regras de engajamento bélico não se destinam a impedir que combatentes matem
inimigos. Elas se destinam, entre outros objetivos, a responsabilizar soldados
que fuzilam cinco crianças e dois adultos assustados dentro de um carro em
Bagdá, apenas porque o motorista estava nervoso — uma das inúmeras aberrações
criminosas praticadas por G.I.s americanos ou terceirizados durante a guerra
no Iraque.
Hegseth, catapultado aos 45 anos para chefiar
o Departamento de Defesa da superpotência, goza de apreço zero junto a boa
parte do oficialato de carreira. Sua desqualificação para o cargo é vista como
ofensiva por ombros estrelados, e não deve ter sido suave receber lição de
liderança militar de quem não tem mais do que oito meses de experiência no
front (oficial de Infantaria do Iraque e Afeganistão),
mais alguns anos na Guarda Nacional e o resto da carreira como comentarista na
Fox News. Ele acabara de ser incorporado à 3ª Brigada da 101ª Divisão
Aerotransportada quando soldados daquela unidade foram denunciados por matar a
sangue-frio três prisioneiros iraquianos na invasão daquele país. O atual
secretário não teve qualquer participação no episódio, mas dele teve
conhecimento à época. E parece se servir de uma falsa dicotomia — letalidade ou
profissionalismo — para alicerçar a doutrina de guerra exposta em Quantico:
segundo ele, as derrotas militares dos Estados Unidos desde
2001 se devem às restrições impostas às regras de engajamento. Todos os
presidentes da época foram frouxos. Trump não é nem será.
O exercício de musculatura verbal durou 45
minutos e foi mais coreografado do que uma palestra TED. Hegseth trafegou pelo
palco com o torso malhado estourando pelo paletó (nas comemorações do 81º
aniversário do Dia D, já se fizera fotografar em exercícios com uma unidade de
Rangers em Omaha Beach) e deve ter se inebriado com a telegenia do próprio
desempenho. Tinha a seus pés, silencioso, o top brass que efetivamente comanda
as operações militares da superpotência mundial em terra, mar e ar, no espaço e
no ciberespaço. O motivo para tamanha encenação declaratória e de sublimação do
desempenho físico como atributo moral? Segundo Tom Nichols, da revista The
Atlantic, foi “para botar todos os cavalos no estábulo e chicoteá-los até
entrarem em forma”.
O deslocamento simultâneo e múltiplo de todo
o comando militar americano para um mesmo local fartamente divulgado foi um
risco que Hegseth tomou sem pestanejar. Por que transtornar o trabalho e a
rotina de centenas de funcionários graduados?
— Porque eu posso — costuma responder Trump
quando indagado sobre alguma de suas medidas aberrantes.
Para o historiador Timothy W. Ryback, diretor
do Instituto de Justiça Histórica e Reconciliação, em Haia, Hegseth emula
o líder.
— Ele parece ter a mesma necessidade de fazer
coisas que outros consideram insanas como forma de demonstrar força — diz
Ryback, autor de “Takeover: Hitler’s final rise to power”.
Um perigo, em suma. Ou melhor, dois perigos.
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