domingo, 5 de outubro de 2025

Não um, dois. Por Dorrit Harazim

O Globo

Hegseth frisou que a missão militar é ‘desatar as mãos dos nossos combatentes para intimidar, desmoralizar, caçar e matar’

Ninguém precisou jurar nada em Quantico. Pelo menos não de público. Os 800 oficiais de alta patente convocados inopinadamente à base de Fuzileiros Navais pelo ministro da Guerra americano, Pete Hegseth, puderam fazer cara de paisagem. Nada que lembrasse o famoso juramento pessoal exigido de cada integrante das Forças Armadas alemãs em agosto de 1934, prenunciando a hecatombe que se seguiu:

— Faço o sagrado juramento de que prestarei obediência incondicional a Adolf Hitler, Führer do Reich e do povo alemão, Comandante Supremo da Wehrmacht.

A imposição de 90 anos atrás, etapa crucial para a nazificação do aparato militar germânico, estabeleceu o fatídico vínculo rijo entre Hitler e o estamento. A lealdade ao país e à sua base constitucional foi transmutada em fidelidade direta ao líder único. Recusar o juramento passou a ser crime grave, e a obediência ao Führer precisava ser irrestrita — até para cometer os crimes de guerra que se seguiriam.

Em Quantico, sentados no auditório feito colegiais ouvindo palestra que vale nota no final do ano, generais e almirantes multicondecorados responderam ao que ouviram com polido aplauso ao final. Nada lhes foi exigido de forma explícita, além de perder peso, cortar cabelo e barba e ser macho. Mesmo assim, fica uma baita esquisitice no ar.

— Chega de regras de engajamento politicamente corretas e excessivamente restritivas — comunicou Hegseth.

Ele frisou que a missão militar da era trumpista é “desatar as mãos dos nossos combatentes para intimidar, desmoralizar, caçar e matar os inimigos” e que considerava frouxo o “etos guerreiro” das Forças Armadas atuais, apegadas a “regras de engajamento estúpidas” para quem vai à guerra. Esqueceu que a Convenção de Genebra e as regras de engajamento bélico não se destinam a impedir que combatentes matem inimigos. Elas se destinam, entre outros objetivos, a responsabilizar soldados que fuzilam cinco crianças e dois adultos assustados dentro de um carro em Bagdá, apenas porque o motorista estava nervoso — uma das inúmeras aberrações criminosas praticadas por G.I.s americanos ou terceirizados durante a guerra no Iraque.

Hegseth, catapultado aos 45 anos para chefiar o Departamento de Defesa da superpotência, goza de apreço zero junto a boa parte do oficialato de carreira. Sua desqualificação para o cargo é vista como ofensiva por ombros estrelados, e não deve ter sido suave receber lição de liderança militar de quem não tem mais do que oito meses de experiência no front (oficial de Infantaria do Iraque e Afeganistão), mais alguns anos na Guarda Nacional e o resto da carreira como comentarista na Fox News. Ele acabara de ser incorporado à 3ª Brigada da 101ª Divisão Aerotransportada quando soldados daquela unidade foram denunciados por matar a sangue-frio três prisioneiros iraquianos na invasão daquele país. O atual secretário não teve qualquer participação no episódio, mas dele teve conhecimento à época. E parece se servir de uma falsa dicotomia — letalidade ou profissionalismo — para alicerçar a doutrina de guerra exposta em Quantico: segundo ele, as derrotas militares dos Estados Unidos desde 2001 se devem às restrições impostas às regras de engajamento. Todos os presidentes da época foram frouxos. Trump não é nem será.

O exercício de musculatura verbal durou 45 minutos e foi mais coreografado do que uma palestra TED. Hegseth trafegou pelo palco com o torso malhado estourando pelo paletó (nas comemorações do 81º aniversário do Dia D, já se fizera fotografar em exercícios com uma unidade de Rangers em Omaha Beach) e deve ter se inebriado com a telegenia do próprio desempenho. Tinha a seus pés, silencioso, o top brass que efetivamente comanda as operações militares da superpotência mundial em terra, mar e ar, no espaço e no ciberespaço. O motivo para tamanha encenação declaratória e de sublimação do desempenho físico como atributo moral? Segundo Tom Nichols, da revista The Atlantic, foi “para botar todos os cavalos no estábulo e chicoteá-los até entrarem em forma”.

O deslocamento simultâneo e múltiplo de todo o comando militar americano para um mesmo local fartamente divulgado foi um risco que Hegseth tomou sem pestanejar. Por que transtornar o trabalho e a rotina de centenas de funcionários graduados?

— Porque eu posso — costuma responder Trump quando indagado sobre alguma de suas medidas aberrantes.

Para o historiador Timothy W. Ryback, diretor do Instituto de Justiça Histórica e Reconciliação, em Haia, Hegseth emula o líder.

— Ele parece ter a mesma necessidade de fazer coisas que outros consideram insanas como forma de demonstrar força — diz Ryback, autor de “Takeover: Hitler’s final rise to power”.

Um perigo, em suma. Ou melhor, dois perigos.

Nenhum comentário: