domingo, 5 de outubro de 2025

Entre católicos e evangélicos, divisão religiosa cristaliza a polarização. Por Luiz Carlos Azedo

Correio Braziliense

A extrema-direita soube utilizar as redes sociais para dar às pessoas um novo status político, assim como o convertido à nova fé se torna uma “outra pessoa”

Tem certas coisas na política brasileira que para se entender é preciso recorrer à antropologia, como a dificuldade de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recuperar parte de sua base eleitoral de 2010, quando encerrou seu segundo mandato. Trata-se daquela faixa da população com renda entre dois e cinco salários-mínimos, que agora foi beneficiada pela isenção do imposto de renda até R$ 5 mil e a redução parcial até R$ 7.350 aprovada pela Câmara, que ainda precisa de referendo do Senado.

A aposta do governo é de que essa parcela da população finalmente se sentirá representada pela “economia do afeto” do “lulismo”, para usar uma expressão de Alberto Aggio. Será? Com certeza, uma parcela sim; mas outra, por razões religiosas, dificilmente: os evangélicos, que apoiam maciçamente o ex-presidente Jair Bolsonaro. Pesquisa DataPoder realizada entre os dias 27 e 29 de setembro, divulgada pelo site Poder 360, mostra que a recuperação de imagem do governo Lula é crescente entre os católicos. A diferença entre os que aprovam e não aprovam aumentou de 3 pontos para 9 pontos percentuais: no final de julho, 48% aprovavam e 45% desaprovavam; agora, 51% aprovam e 42% desaprovam.

Já entre os evangélicos, a situação do governo é muito mais difícil. No mesmo período, a diferença entre quem aprova e desaprova caiu apenas de 42 pontos para 37 pontos percentuais: em julho, a aprovação era de 27% e a desaprovação, 69%; agora, a aprovação é de 29% e a desaprovação, 66%. Recuperar essa diferença não é uma equação simples. Temas como aborto e diversidade de gêneros são barreiras quase intransponíveis. Mas não é só isso. Existe o forte engajamento político dos pastores evangélicos.

Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no final de 2023, revelava a existência de 124.529 estabelecimentos religiosos existentes no país em 2021, dos quais 52% são evangélicos pentecostais ou neopentecostais, liderando o resultado, seguidos por 19% evangélicos tradicionais e 11% de católicos. Entre os evangélicos pentecostais, a Assembleia de Deus é a que possui o maior número de estabelecimentos, 14%.

O número de evangélicos no Brasil triplicou nos últimos 30 anos, atingindo 26,9% da população (47,4 milhões) no Censo de 2022, segundo dados do IBGE. Esse crescimento mostrou uma desaceleração entre 2010 e 2022, mas não entre jovens e mulheres, o que sugere que pode continuar. As igrejas evangélicas ganharam espaço ao oferecerem apoio emocional, social e espiritual, especialmente em áreas periféricas; as pentecostais e neopentecostais estão sobretudo onde o Estado falha em chegar, ou seja, os governos.

Vão da tradicional Assembleia de Deus (que também tem suas divisões), até pequenas denominações de uma única congregação, como a Igreja Evangélica Pentecostal Maná do Céu, em São Vicente (SP). Com origem na Reforma Protestante do século 16 (luteranos, calvinistas, congregacionais, presbiterianos, batistas, metodistas, anglicanos), os pentecostais surgiram, no século 20, como expressão de um movimento de protesto contra o racismo e o elitismo nas Igrejas, e de afirmação da população negra, migrante, feminina e pobre nos Estados Unidos. Denominam “evangélica” a identidade protestante, para reforçar a imagem de detentores “do verdadeiro Evangelho”.

Fé e prosperidade

Os pentecostais representam a maior fatia numérica (cerca de 60%) dos evangélicos, com presença geográfica importante, ocupação de espaço nas mídias tradicionais (rádio e TV) e intensa atuação na política partidária. Espelham também um certo “americanismo”, tanto quanto a organização de nossas empresas e os padrões de consumo dos brasileiros. O que diferencia pentecostais dos evangélicos históricos é a crença no segundo batismo, uma experiência mística atribuída à ação do Espírito Santo, que teria dons especiais, como profecia e cura pela oração. É aí que a antropologia ajuda a entender o tipo de mistura da religião com a política que estamos vivendo. Os cultos evangélicos promovem a transição de uma identidade ou status para outro.

Segundo o antropólogo Victor Turner, que estudou os “ritos de passagem”, na primeira fase desse tipo de transição (separação), o indivíduo é retirado de seu contexto social anterior, o que marca uma ruptura com o status social que possuía anteriormente; na segunda (liminaridade), fica numa espécie de limbo antissistema, como uma “lousa em branco”, e entra em comunhão com os demais participantes; na terceira, é reintegrado à sociedade (reagregação) investido de novo status e nova identidade.

Esse tipo de experiência acabou reproduzido pela extrema direita bolsonarista, que soube utilizar as redes sociais para dar às pessoas antes “silenciosas” uma nova identidade e um novo status político, da mesma forma como o convertido à nova fé pentecostal também se torna uma “outra pessoa”. Deus deseja e manifesta a salvação, cura e abundância material para quem segue o evangelho, ensina a teologia da prosperidade. Ao defender a família unicelular patriarcal e combater o “identitarismo”, Jair Bolsonaro capturou eleitoralmente a maioria desses fiéis, em aliança com Edir Macedo, R. R. Soares, Estevam Hernandes, Silas Malafaia, Valdemiro Santiago, Damares Alves, Rina, Marco Feliciano, Valnice Milhomens, Cassiane e outros líderes pentecostais. Fundiu a fé com a sede de poder.

 

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