Correio Braziliense
A extrema-direita soube
utilizar as redes sociais para dar às pessoas um novo status político, assim
como o convertido à nova fé se torna uma “outra pessoa”
Tem certas coisas na política brasileira que
para se entender é preciso recorrer à antropologia, como a dificuldade de o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva recuperar parte de sua base eleitoral de
2010, quando encerrou seu segundo mandato. Trata-se daquela faixa da população
com renda entre dois e cinco salários-mínimos, que agora foi beneficiada pela
isenção do imposto de renda até R$ 5 mil e a redução parcial até R$ 7.350
aprovada pela Câmara, que ainda precisa de referendo do Senado.
A aposta do governo é de que essa parcela da população finalmente se sentirá representada pela “economia do afeto” do “lulismo”, para usar uma expressão de Alberto Aggio. Será? Com certeza, uma parcela sim; mas outra, por razões religiosas, dificilmente: os evangélicos, que apoiam maciçamente o ex-presidente Jair Bolsonaro. Pesquisa DataPoder realizada entre os dias 27 e 29 de setembro, divulgada pelo site Poder 360, mostra que a recuperação de imagem do governo Lula é crescente entre os católicos. A diferença entre os que aprovam e não aprovam aumentou de 3 pontos para 9 pontos percentuais: no final de julho, 48% aprovavam e 45% desaprovavam; agora, 51% aprovam e 42% desaprovam.
Já entre os evangélicos, a situação do
governo é muito mais difícil. No mesmo período, a diferença entre quem aprova e
desaprova caiu apenas de 42 pontos para 37 pontos percentuais: em julho, a
aprovação era de 27% e a desaprovação, 69%; agora, a aprovação é de 29% e a
desaprovação, 66%. Recuperar essa diferença não é uma equação simples. Temas
como aborto e diversidade de gêneros são barreiras quase intransponíveis. Mas
não é só isso. Existe o forte engajamento político dos pastores evangélicos.
Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), no final de 2023, revelava a existência de 124.529
estabelecimentos religiosos existentes no país em 2021, dos quais 52% são
evangélicos pentecostais ou neopentecostais, liderando o resultado, seguidos
por 19% evangélicos tradicionais e 11% de católicos. Entre os evangélicos
pentecostais, a Assembleia de Deus é a que possui o maior número de
estabelecimentos, 14%.
O número de evangélicos no Brasil triplicou
nos últimos 30 anos, atingindo 26,9% da população (47,4 milhões) no Censo de
2022, segundo dados do IBGE. Esse crescimento mostrou uma desaceleração entre
2010 e 2022, mas não entre jovens e mulheres, o que sugere que pode continuar.
As igrejas evangélicas ganharam espaço ao oferecerem apoio emocional, social e
espiritual, especialmente em áreas periféricas; as pentecostais e
neopentecostais estão sobretudo onde o Estado falha em chegar, ou seja, os
governos.
Vão da tradicional Assembleia de Deus (que
também tem suas divisões), até pequenas denominações de uma única congregação,
como a Igreja Evangélica Pentecostal Maná do Céu, em São Vicente (SP). Com
origem na Reforma Protestante do século 16 (luteranos, calvinistas,
congregacionais, presbiterianos, batistas, metodistas, anglicanos), os pentecostais
surgiram, no século 20, como expressão de um movimento de protesto contra o
racismo e o elitismo nas Igrejas, e de afirmação da população negra, migrante,
feminina e pobre nos Estados Unidos. Denominam “evangélica” a identidade
protestante, para reforçar a imagem de detentores “do verdadeiro Evangelho”.
Fé e prosperidade
Os pentecostais representam a maior fatia
numérica (cerca de 60%) dos evangélicos, com presença geográfica importante,
ocupação de espaço nas mídias tradicionais (rádio e TV) e intensa atuação na
política partidária. Espelham também um certo “americanismo”, tanto quanto a
organização de nossas empresas e os padrões de consumo dos brasileiros. O que
diferencia pentecostais dos evangélicos históricos é a crença no segundo
batismo, uma experiência mística atribuída à ação do Espírito Santo, que teria
dons especiais, como profecia e cura pela oração. É aí que a antropologia ajuda
a entender o tipo de mistura da religião com a política que estamos vivendo. Os
cultos evangélicos promovem a transição de uma identidade ou status para outro.
Segundo o antropólogo Victor Turner, que
estudou os “ritos de passagem”, na primeira fase desse tipo de transição
(separação), o indivíduo é retirado de seu contexto social anterior, o que
marca uma ruptura com o status social que possuía anteriormente; na segunda
(liminaridade), fica numa espécie de limbo antissistema, como uma “lousa em
branco”, e entra em comunhão com os demais participantes; na terceira, é
reintegrado à sociedade (reagregação) investido de novo status e nova
identidade.
Esse tipo de experiência acabou reproduzido
pela extrema direita bolsonarista, que soube utilizar as redes sociais para dar
às pessoas antes “silenciosas” uma nova identidade e um novo status político,
da mesma forma como o convertido à nova fé pentecostal também se torna uma
“outra pessoa”. Deus deseja e manifesta a salvação, cura e abundância material
para quem segue o evangelho, ensina a teologia da prosperidade. Ao defender a
família unicelular patriarcal e combater o “identitarismo”, Jair Bolsonaro
capturou eleitoralmente a maioria desses fiéis, em aliança com Edir Macedo, R.
R. Soares, Estevam Hernandes, Silas Malafaia, Valdemiro Santiago, Damares
Alves, Rina, Marco Feliciano, Valnice Milhomens, Cassiane e outros líderes
pentecostais. Fundiu a fé com a sede de poder.
Nenhum comentário:
Postar um comentário