- Valor Econômico
• Brasil caminha na contramão do continente
Como sabem politólogos e constitucionalistas, ao contrário da dinâmica dos sistemas parlamentares, onde os governos se fazem e refazem ao sabor do alinhamento das forças legislativas do dia, no presidencialismo confere-se ao chefe do executivo a certeza de mandato fixo; mandato forte, suavizado pelo mecanismo do controle mútuo entre os poderes. Muito embora os chefes de governo em nosso continente gozem dessa certeza constitucional, a dinâmica política na América do Sul com frequência tem tornado letra morta o que consiste em cláusula central dos regimes presidencialistas.
De fato, nas últimas três décadas, em sete países sul-americanos, nada menos do que 12 presidentes tiveram seus mandatos interrompidos: os argentinos Raul Alfonsín (1989) e Fernando de la Rúa (2001), o brasileiro Collor de Mello (1992), o venezuelano Carlos Andrés Perez (1993), os equatorianos Abdalá Bucarám (1997), Jamil Mahuad (2000) e Lucio Gutierrez (2005), os paraguaios Raúl Cubas (1999) e Fernando Lugo (2012), o peruano Alberto Fujimori (2000) e os boliviano Sánchez de Lozada (2003) e Carlos Mesa (2005). Se as interrupções de mandato representam pontos traumáticos de inflexão política associados à dinâmica interna de cada país, é possível, no entanto, identificarmos conexões plausíveis entre eventos só na aparência tão díspares.
Como há anos destacou o analista político argentino Rosendo Fraga, as crises políticas que ocorreram na América do Sul entre 1989 e 1997 apresentaram três ingredientes em comum: a interrupção dos mandatos de presidentes eleitos ocorreu com o intervalo médio de dois anos, os chefes de governo lograram atravessar pelo menos metade de seus mandatos e, mais importante, os conflitos se equacionaram por intermédio de mecanismos institucionais - pela entrega antecipada do poder, no caso de Alfonsín, ou pela destituição, nos casos de Collor, Perez e Bucarám. Vale lembrar aqui que essa primeira onda de turbulências no continente recém-democratizado antes de haver sido interpretada como crise, foi lida como uma série de testes a que se viram submetidas às instituições, testes pelos quais teriam passado com louvor: o impeachment de Collor foi então festejado internacionalmente como prova inequívoca do vigor da democracia no Brasil, leitura que se estendeu - em menor medida - ao processo contra Perez e à remoção de Bucarám.
Ora, as crises ocorridas na América do Sul, entre 1999 e 2005 apresentaram traços marcadamente diferenciados daqueles observados na etapa anterior: a interrupção dos mandatos presidenciais se processou com o intervalo médio de menos de um ano, os chefes de governo se viram destituídos do poder antes mesmo de cumprirem a metade dos seus mandatos e, mais grave, os conflitos deixaram de se equacionar pelos canais institucionais; os desfechos foram caóticos, com golpes (Mahuad) ou renúncias presidenciais em ambiente de violência, ingovernabilidade e sublevação das ruas (Cubas, Fujimori, De la Rua e Sánchez de Lozada). Essa segunda etapa de crises do presidencialismo no continente - quando mecanismos institucionais como o legislativo ou o sistema de partidos se mostraram insuficientes para a canalização e equacionamento de conflitos - se acompanhou de descrença na legitimidade das instituições na região. De acordo com pesquisas então realizadas pelo instituto Latinobarômetro, em 2003 não mais de 54% dos sul-americanos apoiavam a democracia.
No que poderia ser identificado como terceiro capítulo do presidencialismo no continente, os chefes de governo eleitos na última década na América do Sul, com a exceção de Fernando Lugo no Paraguai, lograram chegar ao fim de seus respectivos mandatos, em consonância com ditame central dos sistemas presidencialistas: a garantia de mandato fixo ao chefe de governo, independentemente de seu desempenho. Não há como negar que a estabilidade política observada no período coincidiu com um ciclo de crescimento econômico inédito no continente, crescimento que se acompanhou tanto da diminuição dos níveis de pobreza como do apoio crescente às instituições democráticas. Importa aqui assinalarmos que muito embora alterações ocorridas no cenário econômico internacional no último triênio, com o arrefecimento do preço das commodities, tenham reposicionado a taxa de crescimento do continente no seu patamar histórico, nem por isso a América do Sul se aproximou de um quadro recessivo ou de situação de crise político-institucional.
Tanto na economia, como na política o Brasil caminha assim na contramão do continente. A retração econômica e, sobretudo, a grave crise de governabilidade que marcam a conjuntura recolocaram no centro da agenda alternativa política que parecia destinada aos arquivos históricos: o impedimento do chefe do executivo. Limitada inicialmente a um nicho radicalizado e minoritário da oposição e a segmentos extremados de direita, a tese do impeachment hoje ganha terreno não só na sociedade, mas, sobretudo, entre os atores políticos: aglutina o conjunto das oposições e se infiltra na base de sustentação do governo, mais precisamente nas fileiras do PMDB. Como tem ocorrido nos últimos meses, tudo leva a crer que também nesse episódio a posição do PMDB indicará o rumo dos acontecimentos: a eventual renúncia de Michel Temer à coordenação política do governo será lida inevitavelmente como adesão do partido à opção pelo encurtamento do mandato da presidente - alternativa que ganhará então densidade. Caberá nesse caso lembrar que em regimes presidencialistas, na posse caneta, é de competência exclusiva do presidente um último ato: a renúncia ao cargo. Ato que, como sabemos, é seguido de consequências pouco previsíveis para a vida e para os atores políticos.
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Nelson Rojas de Carvalho: é professor da UFRRJ, pesquisador do Observatório das Metrópoles/Ippur/UFRJ
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