- O Globo
Hoje se trata de reinventar o Brasil, um projeto que não tem mais nada a ver com Temer, Dilma, Lula, FHC, qualquer um deles que você lembrar. Esses são o passado
Lá pras tantas, durante o comício que se seguiu ao depoimento a Sergio Moro, Lula declarou que “minha mãe dizia que a gente conhece quando uma pessoa está dizendo a verdade não é pela boca, é pelos olhos”. Não acho que a questão fundamental do depoimento estivesse entre a verdade e a mentira, faltavam provas materiais para isso. Mas os olhos de Lula diziam muita coisa sobre o momento.
Pelos vídeos oficiais e pelas fotos na imprensa, os olhos do depoente estavam tensos e cansados, com muita raiva de tudo em volta. Estavam tristes, uma tristeza marcada pelos bolsões sob as pupilas, uma tristeza que não era de criminoso, nem de vítima. A cofiar inseguro seu bigode, ele esperava pela próxima pergunta com um rancor anterior a ela. Lula tinha os olhos ardentes de quem reflete sobre a injustiça e a impotência, com a serenidade devorada pela exaustão. Talvez pensasse também sobre o que tudo aquilo podia significar para ele e para nós.
Pensava provavelmente na miséria de onde veio e na felicidade que construiu, ao lado de dona Marisa e de quem mais ele amou. Se é que amou. Pensava nos sindicatos por que passou, nos confrontos com os poderosos e em seu poder de dobrá-los, mesmo tendo que ceder tanto. Pensava no animal político que julgou poder ser, acima de qualquer critério conhecido, cheio de sucessos, apesar dos sobressaltos.
Talvez pensasse no primeiro escândalo, o mensalão. E nos que vieram depois, atingindo seus companheiros mais próximos, a quem nunca defendeu publicamente. Como vir de novo à televisão com os olhos marejados e dizer, mais uma vez, que não sabia de nada?
Se é tudo mentira e perseguição, como explicar que Pedro Barusco devolveu R$ 204 milhões, que confessa ter roubado da Petrobras? Como explicar que Renato Duque se dispõe a repatriar € 20 milhões, que teriam a mesma origem? O que fez obras públicas, como a usina Abreu e Lima, a ferrovia Norte-Sul e o desvio do Rio São Francisco, custarem R$ 10 bilhões a mais do que o previsto em contrato? Nos acordos de leniência, a Odebrecht se comprometeu a pagar R$ 7 bilhões de multas. Por que tanta multa? De onde vem esse dinheiro todo? E Eduardo Cunha e Antonio Palocci ainda estão calados. Como ainda falta ouvir OAS, Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, Mendes Júnior, Delta, Carioca etc.
Apesar do inferno que está vivendo agora, Lula foi um bom presidente para os brasileiros. Já cansei de dizer que, na minha modesta avaliação, de Itamar Franco a Lula, passando por Fernando Henrique Cardoso, vivemos os 18 anos dourados da República, os melhores anos que o Brasil conheceu em sua história. Vivíamos felizes, cheios de planos e muita esperança, até a catástrofe provocada pelo mandato e meio de Dilma Rousseff. Hoje, não basta elegermos mais um presidente em 2018, mesmo que seja um nome “novo”, desses que “não fazem política”. Ninguém governa nada sem fazer política.
Hoje se trata de reinventar o Brasil, um projeto que não tem mais nada a ver com Temer, Dilma, Lula, FHC, qualquer um deles que você lembrar. Esses são o passado e sobrevivem da polarização política baseada na falta de sentido, no autoelogio e na ofensa pessoal, o sistema irresponsável que importaram do pior das redes sociais, como aconteceu recentemente entre magistrados supremos e velhacos.
Sempre que penso nisso, tenho saudade das passeatas e das manifestações juvenis de 2013, o único acontecimento político sintonizado com a novidade da qual estamos precisando, prejudicado na época pela burrice ou pelo boicote de militantes mascarados que destruíam o público e o privado, em prejuízo da população e para irritação dela. Graças a eles, a oligarquia fez charme, fingiu entender e assumiu de novo o controle da situação.
A humanidade vai sempre precisar de uma esquerda e de uma direita. Nós avançamos por conflitos, interesses opostos são sempre inevitáveis e precisam ser representados. Mas a esquerda e a direita de hoje não podem mais ser como eram desde a Revolução Burguesa do século XVIII. Não são as ideologias que dão forma ao mundo; são os fatos do mundo, inclusive o acaso, que geram as ideologias criadas pelo homem.
Temos que estar atentos a esses fatos que vão sempre nos surpreender. As estrelas no céu nos parecem tão fixas a nossos olhos e, no entanto, estão sempre em movimento. Os olhos de Lula talvez estivessem tentando entender as novidades no céu de seu destino.
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Cacá Diegues é cineasta
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