- O Estado de S.Paulo
A ação política de governantes, no estado de direito republicano, está submetida à conformidade às normas constitucionais
O Brasil comemora, nesta sexta-feira, 130 anos do regime republicano, que modelou as instituições no âmbito das quais vivemos. É momento oportuno para clarificar o conceito de república, pois “as palavras se torcem conforme o interesse e o tempo”, como dizia Cecília Meirelles.
No Vocabulário de 1728 de Bluteau, “repúblico é o zeloso do bem da República, o amigo do bem público”. A tradição do republicanismo está alinhada com esta acepção no mapa do saber dedicado à discussão do bom governo. Tem características próprias, distintas de outras tradições, como a liberal, a democrática e a socialista, e não se cinge apenas à afirmação da liberdade e da igualdade e à oposição à tirania. Confere prioritário valor prescritivo ao tema do bem público como critério ordenador da clássica preocupação com o bom governo.
Parte da distinção clara entre res publica, o bem público, que é o comum e se desdobra no tempo, distinto do específico, que não é o comum a todos: as coisas privadas, domésticas e familiares. Estas têm as urgências dos interesses do curto prazo do ciclo da vida, nem sempre sensíveis ao bem comum.
Para Cícero, um dos inspiradores da tradição do republicanismo, o comum é o bem do povo (res populi). E o povo (o populus) não é uma multidão, mas sim um grupo numeroso de pessoas, associadas pela adesão a um mesmo direito e voltadas para o bem comum.
A superioridade do governo das leis para promover o bem público em contraste com o governo dos homens é conhecida discussão do pensamento político da Grécia. Adquiriu alcance adicional no mundo romano pelo papel que nele teve o Direito. Lex é uma palavra que tem como base a ideia de relação, de convenção, que liga os homens entre si e se efetiva, não através de um ato de força, mas sim politicamente através de um arranjo ou acordo mútuo. Daí, em matéria de governo das leis, a convergência republicana entre o consensus juris (o consenso do direito) e a communis utilitatis (a comum utilidade), que deve alcançar o povo como o destinatário do que deve ocorrer na res publica.
Cícero destaca, ainda, que a permanência do consensus juris do governo das leis requer que atendam à justiça e à igualdade. É também dele a conhecida formulação da relação entre o governo das leis e a liberdade: “Devemos ser servos da lei para podermos ser livres”.
Montesquieu deu ao tema do governo das leis uma feição própria no âmbito do republicanismo, introduzindo a diferença entre distintos princípios (honra, virtude, medo) que, de acordo com as características dos regimes, norteiam o seu modo de governar. Aponta que é a virtude que inspira a ação numa república, concebendo-a como um princípio que transita pela devoção do indivíduo à coletividade e pelo respeito às leis. O respeito às leis, para Montesquieu, assegura a liberdade na medida em que o poder de julgar for separado do Legislativo e do Executivo. Daí sua consagrada contribuição ao tema da separação de poderes, ponto de partida da crítica à concentração de poder dos absolutismos. A função jurisdicional como uma função autônoma do Executivo e do Legislativo permite não apenas a superioridade do governo das leis, mas o controle da supremacia das leis na gestão governamental.
Na perspectiva da tradição do republicanismo (no caso convergente com a liberal e a democrática), o desdobramento conceitual da sua visão é o constitucionalismo.
O constitucionalismo é a forma institucional de consagrar, por meio de uma constituição escrita, as “regras do jogo” do governo das leis, em cujo âmbito não há diferença entre governados e governantes (como no governo dos homens) e o poder dos governantes é exercido por normas jurídicas vinculantes. Daí porque a ação política dos governantes, num estado de direito republicano, estar submetida não apenas aos juízos de eficiência ou moralidade, mas também ao juízo de conformidade às normas constitucionais.
Este é o alcance do controle pelo Judiciário da constitucionalidade das leis e, nesta esfera, a tutela dos Direitos Humanos positivados nos textos constitucionais essencialmente em defesa dos governados. A guarda da constituição expressa a supremacia do governo das leis e foi adquirindo eficácia com a generalização do judicial review.
O governo das leis assegura a justiça? A justiça é o tema dos temas da Filosofia do Direito, pois a aspiração da justiça permeia a vida do Direito. A noção de justiça, no entanto, comporta mais de uma dimensão, inerentes ao lema liberdade, igualdade, fraternidade. São tuteláveis numa república, desde que atendidos os méritos do devido princípio legal do governo das leis. No seu contexto, a justiça aponta para as virtudes da legalidade (a conformidade da conduta com a norma jurídica) e pressupõe que as normas estejam voltadas para o bem público, lastreador da convivência coletiva. É o que faz da legalidade republicana uma qualidade no exercício do poder.
* Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001- 2002)
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