O
estudo da equipe de Mourão situa-se na linha desenvolvida em governos militares
Um
estudo do Conselho da Amazônia sobre a possibilidade do perdimento da
propriedade daqueles que fizerem desmatamentos, causando danos ambientais,
incomodou o presidente da República. Classificou a proposta como comunista e
socialista, coisa que ela não é. Desconhece o assunto. Decretou que a
propriedade é sagrada, coisa que nunca foi. A equipe do vice-presidente, o
general Hamilton Mourão, está certa e no marco da lei e da tradição.
No
período colonial, a posse da terra não era propriedade. Somos herdeiros da Lei
de Sesmarias, de Portugal, de 1375. As terras eram cedidas para seu uso
produtivo, mantendo delas a Coroa, isto é o Estado, a propriedade eminente. Se
o sesmeiro não a tornasse produtiva num prazo curto, a terra caía em comisso,
considerada devoluta, isto é, devolvida ao Estado.
O regime de sesmarias foi revogado às vésperas da Independência do Brasil, permanecendo o novo país sem um regime fundiário próprio até setembro de 1850, quando o Parlamento brasileiro aprovou a chamada Lei de Terras. Por ela, os possuidores de terra a qualquer título que fizessem o respectivo Registro Paroquial se tornariam proprietários da terra possuída. É o regime que tem vigência, até hoje, com ajustes e correções.
A
Lei de Terras teve por objetivo viabilizar a proibição do tráfico negreiro,
decretada na mesma semana, e dar início ao que viria a ser a abolição da
escravatura. O crédito hipotecário concedido aos fazendeiros tinha por garantia
os escravos, o bem mais valioso de então. Com a cessação do tráfico era
necessária uma garantia mais segura, que veio a ser a propriedade da terra
então aprovada.
O
nosso regime fundiário era um regime defeituoso porque privava o Estado de
controle sobre o uso da terra, um bem singular, que existe em quantidade finita
e não é reprodutível. Não é sujeito, portanto, a mecanismos de reprodução como
os da produção capitalista. O Estado carecia de recuperar o seu senhorio
eminente da terra para restabelecer sua soberania sobre o uso do território, de
que fora privado.
No
mais das vezes, as medidas que o Estado brasileiro tem tomado, sobretudo após a
Revolução de Outubro de 1930, são variantes sociais e econômicas modernizadas
de concepções já presentes na Lei de Sesmarias. Em 1934, o governo Vargas
institui o Código de Águas, que reduz a propriedade fundiária ao solo, da do
subsolo excluindo os minerais, cuja exploração econômica dependeria de
concessão do governo a quem por ela se interessasse.
O
proprietário privado também não estendia seu direito absoluto às faixas de
proteção de rios, outros cursos d’água e lagoas. Com o andar dos anos, outras
medidas foram tomadas, como as relativas às terras indígenas cujas tribos
tiveram o reconhecimento de um direito na sua posse imemorial. O que fortalecia
seu direito à sua própria concepção de uso da terra. Restrições alcançaram
ainda os lugares da memória social como bens históricos, sujeitos a limitações
de uso.
Em
1964, o regime militar suprimiu o item da Constituição de 1964 que obrigava o
Estado e indenizar em dinheiro o proprietário de terra alcançado por medida de
reforma agrária no cumprimento da função social da propriedade. O regime
reconheceu a legitimidade de uma demanda social e política do governo que
derrubara.
Fez
mais. Aprovou o Estatuto da Terra, elaborado por uma equipe sob coordenação do
general Golbery do Couto e Silva. Distinguiu latifúndio por extensão e por
exploração, de modo que mesmo a propriedade de extensão limitada, sendo
improdutiva ficava sujeita às mesmas medidas contra o latifúndio. Essa proposta
era bem melhor do que a de João Goulart, porque prática, viável, baseada na
indenização em títulos da dívida agrária e não em dinheiro. O estatuto já
previa a desapropriação em caso de dano ambiental.
No
fim do governo Figueiredo, o general Danilo Venturini, ministro de Assuntos
Fundiários, promoveu uma consolidação das leis agrárias do país com vistas à
adoção do reconhecimento da propriedade com base no efetivo trabalho na terra,
e não mais apenas com base em documentos, muitas vezes falsificados.
Mais
adiante, o Estado brasileiro aprovou uma lei que determinava o perdimento da
terra para o programa de reforma agrária em caso de ser usada no plantio de
drogas, como maconha e coca. Foram no mesmo sentido as medidas que em relação a
propriedades em que há utilização de trabalho escravo.
O
estudo da equipe do general Mourão, ao preconizar a desapropriação das terras
em que se verifique o uso destrutivo do ambiente, o mau uso da terra, situa-se
nessa linha de modernização do direito fundiário brasileiro e de combate à
criminalidade fundiária, retrógrada e antissocial.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).
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