sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Flávia Oliveira - Eleger e proteger

- O Globo

Novos eleitos incomodam quem está nos lugares de poder

As mesmas urnas que empurraram para o Centrão a representação política brasileira legaram um traço de diversidade a um ambiente legislativo, ainda, predominantemente masculino, branco, heterossexual. Nas horas seguintes ao domingo cívico, de abstenção recorde, organizações da sociedade civil contabilizavam o saldo da profusão de candidaturas identitárias, como é classificada a luta por direitos de quem não faz parte da minoria que, desde sempre, manda. Brasil afora, chegarão às Câmaras Municipais em 2021 mulheres negras, pessoas LGBTIs, indígenas e quilombolas. Num país que é território fértil de extremismo e violência política, tão importante quanto festejar a ascensão desses quadros é zelar pela segurança física e pelo exercício pleno das funções para as quais foram escolhidos.

Estudo da Terra de Direitos e Justiça Global mostrou que, a cada 13 dias, há pelo menos um caso de ataque à vida de políticos eleitos, candidatos ou pré-candidatos no Brasil; em dois terços dos casos, não houve identificação de criminosos. As organizações mapearam 327 casos de violência política entre janeiro de 2016 e setembro deste ano. Foram 125 assassinatos e atentados (18 no Estado do Rio), 85 ameaças, 33 agressões, 59 ofensas, 21 invasões. Nas situações de ofensa, mulheres foram 76% das vítimas. Cientista político e coordenador-adjunto do CESeC, Pablo Nunes monitorou 84 casos de políticos assassinados somente este ano. “É muito impressionante como a violência é ferramenta política no Brasil. E está aumentando. Certamente, os grupos de minorias que, em alguns casos, estão sendo representados pela primeira vez nos municípios incomodam os que já estão nos lugares de poder. É uma preocupação importante de ter. Há que construir iniciativas para coibir a violência e modos de responsabilizar os autores. A impunidade é muito ruim”, resume.

A revista “Gênero e número” informou que 44% dos integrantes das bancadas municipais que assumirão em 2021 se declararam pretos ou pardos; mulheres são 18%. Nas dez cidades com o maior número de cadeiras, vereadoras ocuparão 83 de 421 cadeiras; eram 58, segundo a plataforma “Celina” do GLOBO. A Câmara do Rio terá três representantes do campo progressista, duas negras: Tainá de Paula (PT) e Thaís Ferreira (PSOL). A bancada psolista contará também com Mônica Benício, viúva de Marielle Franco, assassinada em março de 2018, com o motorista Anderson Gomes. O crime, até hoje, segue sem esclarecimento sobre mandante e motivo. O Instituto Marielle Franco contou, em 54 cidades de 13 estados, 81 pessoas eleitas e 253 suplentes previamente comprometidos com propostas da ex-vereadora. Nova Friburgo, na Serra fluminense, elegeu a primeira vereadora negra, Maiara Felício (PT). Elenízia da Mata (PT) será pioneira no município de Goiás (GO); Taise Braz (PT), em Catanduva (SP); Jô Oliveira (PCdoB), em Campina Grande (PB); Carol Dartora (PT), em Curitiba (PR). Mazéh Silva será a única negra na Câmara de Cáceres (MT). A professora Ana Lúcia Martins (PT) foi a primeira negra eleita representante municipal em Joinville (SC). Na noite da eleição, logo após o resultado, suas redes sociais foram invadidas, e ela começou a sofrer ataques. A polícia catarinense investiga.

A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) identificou 294 candidaturas de travestis, mulheres e homens trans nas eleições 2020. Entre mandatos individuais e coletivos, 30 foram eleitos, incluindo as professoras Duda Salabert (PDT) e Linda Brasil (PSOL), mais votadas em Belo Horizonte e Aracaju, respectivamente. Erika Hilton (PSOL) e Thammy Miranda (PL) serão os primeiros vereadores trans na Câmara Municipal de São Paulo; Benny Briolly (PSOL), em Niterói, região metropolitana do Rio. São vitórias maiúsculas num país que carrega a marca de ser um dos mais violentos do mundo para a população LGBTI.

Nas comunidades quilombolas, foram 69 eleitos, entre os quais um prefeito, cinco vices e 63 vereadores, informou a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras (Conaq). A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) acompanhou 2.212 candidaturas; 159 foram eleitos, incluindo oito prefeitos, seis vices e 145 vereadores. “O aumento da participação da população indígena nas eleições é concomitante ao aumento dos ataques as seus direitos em meio à pandemia de Covid-19”, desabafou Dinaman Tuxá, um dos coordenadores da Apib. Ele expressa a motivação de segmentos (mais ou menos) numerosos que seguem desassistidos pelo poder público. Buscam protagonismo por meio de organizações da sociedade civil e, não raro, sem apoio dos partidos a que se filiaram. É para isso que chama a atenção Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil: “Foi o movimento social que construiu tudo isso, não os partidos. TSE e STF tiveram que forçar a distribuição proporcional dos recursos para candidaturas negras, e isso não significa que tenham recebido. Essas legendas que receberam bem esses votos precisam agora garantir condições de trabalho e integridade física para que essas pessoas cumpram seus compromissos com o eleitorado”.

Coautor do recém-lançado “Raça e eleições no Brasil”, Luiz Augusto Campos, professor de Sociologia e Ciência Política na Uerj, vê na violência a reação de elites políticas à ocupação dos espaços de poder por novos atores. Os obstáculos, enumera, começam no acesso aos partidos, alcançam o financiamento das campanhas, deságuam em resistência, silenciamento, ameaças: “Além do racismo estrutural, há o problema de origem. Essas candidaturas não surgem nos ambientes tradicionais. Quanto menor a cidade, maior o problema, porque o Brasil fornece pouca proteção”. A luta é essa.

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