Eleitor
recusou a estupidez antipolítica, mas a esperança precisa aprender a fazer
conta
Saúdo
alguns sinais que
vêm das urnas como auspícios de sanidade. Mas estamos ainda
lendo o voo das aves e fazendo interpretações. Convém não confundir presságios
com realidade, bom augúrio com antevisão do futuro. “O mundo é para quem nasce
para o conquistar/ E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha
razão.”
Os
versos pertencem ao poema “Tabacaria”, de Fernando Pessoa, no heterônimo Álvaro
de Campos. Não se trata de autoajuda para tontos, mas de autoironia para
sábios. No verso seguinte, escreve: “Tenho sonhado mais que o que Napoleão
fez”. O poeta conquistou o mundo como inapto e sonhador. A literatura,
felizmente, consagra o erro porque não é tabela trigonométrica. A política é
quase.
O
eleitorado, na média, manteve distância da estupidez encarnada pelo presidente da
República. O sobrenome “Bolsonaro” agregado a candidatos
(re)elegeu apenas o
vereador Carlos, que obteve 35.657 votos a menos do que em 2016,
quando Jair era só um postulante à Presidência, de sucesso então improvável. O
poder do pai tirou votos do filho.
Até
o bolsonarismo Nutella do Novo levou uma sova. Os laranjas que faziam a dança
do acasalamento da antipolítica com férias em Miami não conseguiram eleger nem
um miserável prefeito. Seus candidatos obtiveram menos de 392 mil votos no
país. Ou mudam o CEO ou chamam de volta o antigo, sei lá.
Aquela
que entrou na disputa pela Prefeitura de São Paulo como Joice
Hasselmann (PSL) saiu como Joice Cristina. Durante a voragem de
2018, a “Bolsonaro de saias” teve desempenho fabuloso: 1.064.047 votos —289.404
só na capital. Chutada pelos filhos do pai, rompeu com o clã e até engrolou
alguma civilidade. A candidata, no entanto, voltou ao velho figurino: “direita
raiz”, “biógrafa de Sergio Moro”, “sem mimimi” etc.
Pois
bem: Joice Cristina, o segundo orçamento eleitoral público na cidade, amargou
1,84% dos votos: 98.342. Nem a rima elíptica em debate de TV, em que associou o
IPTU ao monossílabo tônico sem acento mais famoso da língua, garantiu-lhe
saliência eleitoral compatível com a da personagem que inventou.
Seu
ocaso é oportuno para que eu advirta para o trincado da xícara que ainda pode
nos conduzir à terra dos mortos —de Covid-19, susto, bala perdida ou vício—
caso achemos que basta sonhar para conquistar o mundo. Bolsonaro tentará tomar de
volta o espólio do PSL. Precisará de recursos e de tempo no horário
eleitoral para disputar a reeleição. Se não conseguir, não lhe faltará abrigo
em outra legenda do centrão ou
da extrema direita.
Esquerda
e centro-esquerda murcharam no primeiro turno na comparação com 2016. Juntas,
obtiveram pouco mais de 21 milhões de votos. Legendas que podem ser
classificadas, sem exagero, de extrema direita somaram quase 13 milhões. A
direita e o centrão saltaram de pouco mais de 24 milhões para quase 31 milhões.
Na
centro-direita, o DEM ganhou
quase 3,5 milhões, mas o PSDB perdeu quase 7 milhões. O centrista MDB assistiu
à evaporação de mais de 4 milhões. Os números estão detalhados na minha página
no UOL. Os vitoriosos da
eleição de 2020 compõem, em suma, a base do governo ou, ainda que nela não
estejam formalmente, cedem seus quadros para uso de Bolsonaro.
Há
fatores de risco para a sobrevivência do presidente como candidato, mas também
os há para o seu fortalecimento. Não cabem neste texto. O que, nesse cenário,
independe de artes divinatórias? Se esquerda e centro-esquerda preferirem a
balcanização à federação e se centro e centro-direita juntarem mais vaidades do
que objetividade —flertando, inclusive, com a antipolítica—, os auspícios da
sanidade podem dar na terra dos mortos.
Eleições
municipais e federais têm variáveis distintas, eu sei. Estas estão muito mais
sujeitas à guerra de valores. As abstrações ideológicas tomam o lugar dos
buracos nas ruas. Cresce, pois, o perigo do flerte com a estupidez. Não quero
ser o chato da festa, leitor, eu juro! Mas não custa lembrar que a “cadela do
fascismo está sempre no cio”. Melhor que o “pessimismo da inteligência” torne
prudente o “otimismo da vontade”.
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