Em
cenário de juros baixos, novo presidente deixa de lado receio de maior
endividamento público e propõe pacotes trilionários
Ao
apresentar, no começo de janeiro, um
pacote econômico inicial de US$ 1,9 trilhão, o presidente americano,
Joe Biden, referiu-se a um novo consenso na economia, afirmando que o maior
perigo na política econômica neste momento é o governo fazer pouco, em vez de
muito.
—
Há um consenso esmagador entre os principais economistas, de esquerda, direita
e centro, de que, para evitar que a economia entre em colapso neste ano, e
fique muito, muito pior, devemos investir quantias significativas de dinheiro
agora — disse Biden.
Ao
se referir a consenso, Biden em parte fazia política ao seu estilo
típico, em busca de amplos acordos bipartidários. O presidente também
citou o momento
da pandemia, considerado único, pelos distúrbios que provoca na
sociedade. Economistas ouvidos pelo GLOBO afirmam, contudo, que as mudanças na
orientação econômica antecedem a crise atual, e devem continuar depois dela.
Durante muito tempo, a ortodoxia econômica americana sustentou que um grande déficit público e baixo desemprego provocariam um aumento agudo da inflação. Já no final dos anos Obama, no entanto, ganhou força um novo entendimento da capacidade de endividamento público diante de juros baixos.
Esta compreensão
manteve-se no governo Trump, que alcançou
índices historicamente baixos de desemprego e expandiu a dívida, sem
elevar os preços.
A política econômica americana de Biden deve estar à esquerda das de Bill Clinton e de Barack Obama. A principal ambição do presidente, como diz uma fórmula por ele repetida, é “recompensar o trabalho, e não a riqueza”. Estão previstos gastos estatais significativos em áreas como infraestrutura e desenvolvimento de tecnologias sustentáveis, novas leis de valorização do trabalho e a promoção de uma reforma fiscal. Os juros americanos estão em índices historicamente baixos, e assim devem seguir por algum tempo.
Novos
tempos
Em
vista disso, o governo deve aumentar os gastos e o endividamento público,
esperando que este se pague, conforme a economia cresça.
—
Essas mudanças já aconteciam desde o rescaldo da crise de 2008, a pandemia as
acelerou, e elas devem continuar ao longo do governo. O medo dos déficits foi
superado, e houve um entendimento de que é necessário um maior papel federal
para a estabilidade econômica. Os conselheiros mais novos do Congresso têm um
entendimento muito diferente do que há 10 ou 20 anos — afirmou Josh Mason,
professor de Economia da John Jay College, em Nova York. — Eles se intimidam
muito menos pelo vocabulário da responsabilidade fiscal, e têm uma visão mais
expansionista da função do governo federal.
O pacote
de estímulo inicial do governo — o terceiro da pandemia, e atualmente
sob avaliação do Congresso, onde há grande pressão sobre as duas maiorias
democratas para a aprovação — parte do princípio de que a recuperação econômica
obrigatoriamente se entrelaça com o combate à pandemia. Como observa Daniele
Tavani, professor de Economia da Universidade Estadual do Colorado, no terceiro
trimestre do ano passado o PIB americano caiu, embora não houvesse quarentenas
no país.
—
Isso significa que as pessoas perceberam a severidade da pandemia, e estão
cortando em seus próprios hábitos de consumo no setor de serviços, mesmo sem
quarentenas sendo impostas — disse Tavani. — Ou seja, até você controlar a
pandemia, você não poderá retomar a economia. A estratégia precisa ter duas
frentes, mirando o lado epidemiológico e também o econômico.
O
pacote tem três grandes eixos: reforçar a resposta à pandemia; fornecer ajuda
direta a famílias americanas; e apoiar empresas e comunidades mais afetadas
pela crise. Há medidas previstas para acelerar a vacinação e a capacidade de
testagem, para fortalecer escolas e universidades e o pagamento de um auxílio
único de US$ 1.400, entre outras.
A
maior parte das propostas é transitória, mas algumas extrapolam o contexto
pandêmico e serão permanentes. É o caso do aumento do salário mínimo federal,
de US$ 7,25 para US$ 15. Outras ações, como a expansão do tempo do
seguro-desemprego, tem prazo limitado, mas devem voltar ao debate público
pós-pandemia. Alguns economistas criticaram parte dessas propostas, como o
aumento do salário-mínimo, que encarece o custo de contratações em um momento
de alto desemprego.
No
mês que vem, Biden pretende anunciar um segundo pacote trilionário de estímulo,
tratando das promessas ligadas ao clima. Segundo o programa de governo, o plano
favorecerá a infraestrutura (antiga promessa de Trump, deixada de lado), a
transição energética, o desenvolvimento de novas tecnologias limpas, entre
outras áreas. A meta, diz o programa, é gerar “bons empregos, sindicalizados,
que expandirão a classe média”.
Os
democratas terão a maioria nas duas Casas do Congresso ao menos por dois anos,
até novas eleições legislativas, e o ritmo de propostas deve ser acelerado
nesse período. Uma das batalhas mais duras deve ser a da reforma fiscal: o
governo quer ampliar a receita federal em mais de US$ 3 trilhões ao longo de 10
anos por meio do aumento de impostos para corporações e contribuintes de alta
renda. Especificamente, pretende aumentar impostos de quem ganha US$ 400 mil
por ano ou mais, revertendo cortes de Trump, e criar um imposto mínimo contábil
de 15% para empresas com US$ 100 milhões de receita e que pagam pouco de IR
federal.
Oposição
financista
Frente
às medidas, há uma oposição do setor financeiro. Em um artigo no Financial
Times na semana passada, Ruchir Sharma, estrategista do banco de investimentos
Morgan Stanley, disse que Biden tem uma “visão de elite”, expressa por
personalidades do FMI, da academia e da mídia. “A pessoa comum entende que não
existe almoço grátis. O caminho para a prosperidade não pode ser tão fácil
quanto apenas imprimir e gastar. Se depender de juros baixos para financiar
novos aumentos maciços nos gastos do governo, Biden vai redobrar as políticas
que aumentaram os problemas que pretende consertar: crescimento fraco,
instabilidade financeira e aumento da desigualdade”, escreveu.
Para
Stephanie Aaronson, vice-presidente e diretora de Economia do Instituto
Brookings, em Washington, críticas como a de Sharma devem vir de políticos
republicanos:
—
Os republicanos tentarão equilibrar o endividamento, mesmo sem nunca terem
feito isso com Trump — disse.
Para
a especialista, “mesmo tendo ocorrido mudanças no entendimento da dívida, Biden
vai querer ser responsável” — o que combina mais com seu perfil centrista. Um
desafio mais incerto, segundo a pesquisadora, são os efeitos a longo prazo da
pandemia.
—
Haverá disrupções duradouras, que ainda não sabemos. As pessoas fazem mais
compras on-line, e as lojas não estão se recuperando. Muitos também agora usam
Zoom e não voltarão aos trabalhos como antes, e outros trabalhadores não
conseguirão voltar a seus empregos mesmo depois de a pandemia ser controlada.
Não espero que o desemprego chegue a 3% ou 4% de novo tão rápido — disse
Aaronson.
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