Nos
EUA e no Brasil, passou da hora de reconhecer que as normas democráticas
racharam sob Trump e Bolsonaro
‘Kintsugi’ (algo como reparação dourada) é a
arte japonesa de devolver vida a objetos de cerâmica quebrados, remendando-os
com pó de ouro. Essa centenária artesania nasce da ideia de que, ao aceitarmos
imperfeições e falhas, ao mantermos visível a cicatriz, podemos criar algo
ainda mais forte, ainda mais belo do que o original único agora despedaçado. Nada
mais atual, eterno e multiuso do que essa arte, visto que ela pode ser aplicada
tanto a um pote quebrado como a pessoas, à democracia estalante de hoje e à
própria vida. Quando exigimos a perfeição em tudo e todos, inclusive em nós
mesmos, acabamos criando um mundo cruel em que recursos e possibilidades são
descartados.
Só que, para recorrer ao restauro, é necessário, antes, reconhecer que algo quebrou. Nos Estados Unidos e no Brasil, passou da hora de reconhecer que as normas democráticas racharam fundo sob Donald Trump e Jair Bolsonaro. Lá, o recém-empossado Joe Biden tenta iniciar o remendo sem estardalhaço, mas com gravidade, pois a hora é mesmo grave. Ao contrário do antecessor, Biden assina sua aguardada cota de decretos executivos como se fosse um burocrata apressado em carimbar formulários inúteis. É o oposto. Alguns desses decretos têm consequências planetárias, visam a corrigir cursos que apontavam para o abismo na questão climática. Outros abrem caminho para reparar desigualdades gritantes no próprio país.
Talvez
algum dia venham a ser olhados como obra de kintsugi da democracia trincada, mas por enquanto
são apenas decretos, sem a permanência de leis, e nenhuma garantia de que o
remendo trabalhado não seja obstruído. Têm muito a conspirar contra. Continua
intacta a dependência dos republicanos da máquina eleitoral fiel a Trump. O
arrojo do extremismo branco aumentou desde o ataque do dia 6 contra o
Legislativo. O Capitólio e seu entorno permanecem enjaulados por precaução. A
deputada de primeiro mandato Lauren Boebert, conspiracionista fervorosa, já
anunciou que não abre mão de circular pelo Capitólio com sua pistola Glock
carregada, e Marjorie Greene, também eleita em 2020 por apoiadores da seita
QAnon, já elogiou quem defende “enfiar uma bala na cabeça” da presidente da
Casa, a democrata Nancy Pelosi. É da própria Pelosi, a frase da semana que
melhor exprime a preocupação com as instituições do país: “O inimigo está
dentro da Câmara de Representantes”. Terrível para a nação fundadora do sonho democrático
moderno.
O
labor pela democracia nunca acaba, ensinou Walt Whitman. O grande poeta da
Guerra Civil Americana repetia que a palavra é grandiosa, mas sua história
permanece em branco, porque ainda precisa ser encenada. Algo como o tempo
passado e o tempo futuro lutando pelo controle do presente, definiu o
maravilhoso Lewis H. Lapham, fundador e alma da “Lapham’s Quarterly”.
No
Brasil, o pote está tão esmigalhado que é difícil ver algum remendo no
horizonte. Faltam vacina e decência, sobram condenados à morte por asfixia.
Pela peculiaridade da Covid-19, são perdas silenciadas atrás de portas de
hospitais, de casas funerárias, de cemitérios, enterros em covas onde o
distanciamento já não cabe mais. Um horror amplificado pelos pequenos horrores
do cotidiano nacional, como um hospital federal que sofre queda de energia e
compromete 720 doses da vacina da vida.
Por
sistêmicas, as indignidades infligidas à vida brasileira já fazem parte do
esperado. Só vez por outra o caldo ferve no cidadão obrigado a economizar
energia para aguentar o amanhã. Na quarta-feira passada, a mais recente
patifaria verbal de Jair Bolsonaro entornou um desses caldos de indignação. Ela
merece registro neste espaço por dizer o essencial sobre a excrescência que
habita no Palácio da Alvorada. No evento fechado de uma churrascaria de
Brasília, o presidente estava de pé, microfone em mãos. Sentados em mesas
abarrotadas, a ruidosa confraria de áulicos, que incluía o chanceler Ernesto
Araújo. Explodiram de gáudio quando Bolsonaro respondeu assim a críticas
recebidas por gastos alimentícios do governo: “E, quando eu vejo a imprensa me
atacar dizendo que comprei 2 milhões e meio de latas de leite condensado, vai
pra puta que o pariu. Imprensa de merda essa aí. É pra enfiar no rabo de vocês aí...”.
O perigo à democracia brasileira já não é mais o Mito. São os adoradores
decididos a perpetuar o mito.
Melhor
procurar refúgio noutro marco da cultura japonesa: o caractere Ma, que
representa a arte do silêncio, o espaço sagrado do silêncio em todas as
atividades humanas. No Ocidente, sentimos desconforto quando se estabelece um
vazio durante uma conversa a dois ou uma reunião em grupo. Nossa tendência é
preencher esse vazio com qualquer abobrinha. Para japoneses, não se trata de um
vazio, e sim de uma forma sublime de se conectar através desse espaço
silencioso. O que seria da música sem os silêncios que conectam os sons? Não
seria música, seriam apenas sons. Bonito, não?
Por aqui, estamos em outro diapasão.
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