EDITORIAIS
Só Ernesto Araújo não viu dano nos ataques
à China
O Globo
O ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo pediu demissão em 29 de março, sob forte pressão de parlamentares que o acusavam de prejudicar, com sua política torta e declarações estapafúrdias, a compra de vacinas para o Brasil. Expoente do bolsonarismo de raiz, solapou em dois anos a credibilidade da diplomacia brasileira erguida em décadas. Apesar disso, em seu depoimento na CPI da Covid, enalteceu sua gestão, descreveu uma realidade paralela que não existe e negou seus ataques à China, de conhecimento público. “Jamais provoquei atritos com a China”, disse o ex-chanceler, que já se referiu ao Sars-CoV-2 como “comunavírus”.
A desfaçatez provocou reação. O presidente
da CPI, Omar Aziz, foi preciso: “Vossa excelência está faltando com a verdade.
Se quiser, leio alguns trechos que o senhor escreveu, inclusive bateu boca com
o embaixador chinês”. A senadora Kátia Abreu, uma das protagonistas da queda de
Araújo, o chamou de “negacionista compulsivo” e “omisso”. Afirmou que ele foi
uma “bússola” que nos dirigiu “para o caos, para um iceberg, para um
naufrágio”.
Em longo depoimento, Araújo se esmerou em negar suas ações à frente do Itamaraty. A despeito dos malabarismos, não conseguiu evitar expor o presidente Jair Bolsonaro. Confirmou que as gestões do ministério para facilitar a importação de insumos para produção de cloroquina tiveram a participação de Bolsonaro, um dos maiores defensores do uso da droga no tratamento da Covid-19, embora estudos científicos comprovem que ela é ineficaz contra a doença e pode causar efeitos adversos.
Araújo expôs o presidente também ao
comentar a ida de uma delegação a Israel em março para conhecer um spray nasal
contra a Covid-19, ainda em fase inicial de testes. Disse que a viagem surgiu
após telefonema do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, a
Bolsonaro. O tour, que segundo a CPI custou R$ 500 mil, não resultou em nada,
nem sequer um acordo de cooperação entre os países.
O ex-chanceler não explicou de modo
convincente por que o Brasil foi um dos últimos a entrar no Covax, o consórcio
mundial de vacinas capitaneado pela OMS — aderiu apenas em setembro, após 170
países. Questionado por que o governo optou pelo mínimo de 10%, quando poderia
contratar vacinas para até 50% de sua população, disse que a decisão foi do
Ministério da Saúde. No geral, atribuiu orientações à Saúde, passando a batata
quente ao ex-ministro Pazuello, que depõe hoje.
A inércia de Araújo ficou evidente quando
os senadores perguntaram sobre o colapso em Manaus. Ele não autorizou um voo
para trazer oxigênio doado pela Venezuela, que teve de vir por terra. Confirmou
que não fez qualquer gestão para facilitar a vinda do produto. Também afirmou
ter recebido a carta da Pfizer cobrando do governo uma posição sobre as ofertas
feitas ao país — e foi outro que nada fez.
Mesmo sem revelações estarrecedoras, o
depoimento de Araújo contribuiu para consolidar o já consistente material
reunido pela CPI para demonstrar que a compra de vacinas nunca foi prioridade
para o governo Bolsonaro. A cada dia, fica mais demonstrado que a situação de
hoje, quando o Brasil tem apenas 10% de vacinados com as duas doses, poderia
ser diferente se o governo tivesse agido de forma pragmática e não ideológica. Mas,
como resumiu Aziz, “optou por cloroquina à frente das vacinas”.
Constituinte chilena desperta um misto de
esperança e preocupação
O Globo
Exemplo de sucesso de um modelo econômico liberal, o Chile atravessa o momento histórico mais crítico desde o fim da ditadura de Augusto Pinochet. A Assembleia Constituinte que emergiu das urnas esta semana desperta ao mesmo tempo esperança e preocupação. Saíram vitoriosos partidos independentes, que somaram 48 das 155 cadeiras. Direita e centro-direita, ligadas ao presidente Sebastián Piñera, elegeram só 37 constituintes, abaixo do terço necessário para bloquear artigos na nova Constituição. Na esquerda, a lista encabeçada pelos comunistas deverá chegar a 28 cadeiras, mais que as 25 da centro-esquerda formada pelos partidos que governaram o Chile em 23 dos últimos 31 anos.
A vitória dos independentes traduz o
espírito antipolítica que animou os protestos de rua de 2019. Não há maior
símbolo disso que a eleição de Giovanna Grandón, profissional de transporte
escolar célebre por envergar a fantasia do pokémon Pikachu nas manifestações. A
Constituinte terá um ano para submeter a plebiscito uma nova Carta, que deverá
substituir a Constituição em vigor desde os anos Pinochet.
É preciso reconhecer o avanço de um corpo
representativo onde, pela primeira vez, indígenas ocuparão cadeiras (17), e
mulheres serão maioria (79, entre 155). É palpável a esperança que os chilenos
depositam na Constituinte. Há forte demanda por estender a rede de proteção
social, atribuindo ao Estado responsabilidades maiores na educação, saúde e
previdência, setores em que o protagonismo hoje é privado.
Mas também há motivo para receio. Por mais
que a população enfrente dificuldades, quando se compara o Chile ao resto da
América Latina, fica claro que a revolta espelha mais a percepção que a
realidade. É, de longe, o país mais próximo do Primeiro Mundo no continente.
Desde os anos 1980, a pobreza caiu de 40% da população para menos de 10%. É um
caso raro de país emergente que parece ter achado um caminho para vencer o que
os economistas chamam de “armadilha da renda média”, com um modelo que reúne
abertura comercial e saúde fiscal, preocupação de todos os governos, à esquerda
ou à direita. A inflação está sob controle, e o crescimento, embora tenha caído,
é superior à média latino-americana. O Banco Mundial estima que em breve a
renda per capita chilena ultrapassará os US$ 25 mil, dois terços acima da
brasileira e um terço acima da argentina. Ainda que a concentração de renda
seja alta, a desigualdade está bem abaixo da média continental.
É natural que uma Constituinte inclinada à
esquerda tente gravar mais direitos sociais no texto constitucional. Seria
também fundamental assegurar que tenham como ser financiados no futuro. Mesmo
que o Chile adote um modelo de crescimento mais baixo, será preciso garantir a
qualidade da educação para que seja mesmo mais inclusivo. Do contrário, o risco
é evidente. O país que sempre foi exemplo de sucesso repetirá o modelo
fracassado de vizinhos como o Brasil — onde a Constituição de 1988 garantiu
educação, saúde e aposentadoria a todos, mas até hoje ninguém sabe muito bem
como pagar.
Atentado contra a democracia
O Estado de S. Paulo
A difusão de desinformação sobre as urnas
eletrônicas é fato grave, que atenta contra o regime democrático
Atendendo a apelos bolsonaristas, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), determinou a criação de comissão especial para discutir a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 135/19, que propõe a volta do voto impresso. Apresentada em 2019 pela deputada Bia Kicis (PSL-DF), a proposta exige a impressão de cédulas em papel na votação e na apuração de eleições, plebiscitos e referendos no País.
No dia 13 de maio, ao lado de Arthur Lira,
o presidente Jair Bolsonaro saudou a criação da comissão na Câmara. “O voto
impresso tem nome, né? A mãe é a deputada Bia Kicis, lá de Brasília; o pai é o
Arthur Lira, que instalou a comissão no dia de ontem. Parabéns, Arthur!”, disse
Jair Bolsonaro.
Dias antes, o presidente Jair Bolsonaro
havia mencionado a aprovação da PEC 135/19. “Com toda certeza, nós aprovaremos
isso no Parlamento e teremos, sim, uma maneira de auditar o voto por ocasião
das eleições de 22”, disse no dia 9 de maio.
Em meio à pandemia de covid-19, com uma
grave crise sanitária, social e econômica a abater o País, é um inteiro
disparate a promoção da bandeira do voto impresso. Trata-se de mais uma
demonstração da irresponsabilidade e do negacionismo do governo de Jair
Bolsonaro.
No entanto, a movimentação de Jair
Bolsonaro a favor do voto impresso é muito mais grave do que mera indiferença
pelas circunstâncias do País e da população – o que, por óbvio, já é
extremamente preocupante. A tentativa de dar ao voto impresso um caráter de
prioridade nacional, como se a lisura das eleições estivesse em risco por causa
das urnas eletrônicas, é um atentado contra a democracia.
De forma contínua e sem nenhum fundamento,
o presidente Jair Bolsonaro tem difundido dúvidas sobre o atual sistema
eleitoral. Por exemplo, no ano passado, prometeu apresentar provas de supostas
fraudes nas eleições de 2018. “Pelas provas que tenho em minhas mãos, que vou
mostrar brevemente, eu tinha sido, eu fui eleito no primeiro turno, mas no meu
entender teve fraude”, disse em março de 2020. Até agora, Jair Bolsonaro não
apresentou nenhuma prova.
A difusão de desinformação sobre as urnas
eletrônicas é fato grave, que atenta contra o regime democrático. No dia 9 de
maio, por exemplo, ao falar da PEC 135/19, Jair Bolsonaro insistiu na ideia de
que o atual sistema não é confiável: “Ganhe quem ganhar, mas na certeza e não
na suspeição da fraude”. Ora, não existe nenhuma suspeita de fraude no atual
sistema de votação eletrônica.
A rigor, o quadro que se tem é o oposto do
que Jair Bolsonaro difunde. No ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF)
confirmou, por unanimidade, decisão liminar de 2018, reconhecendo que a
obrigatoriedade de impressão de registros de votos depositados de forma
eletrônica na urna – prevista na reforma eleitoral de 2015 – era
inconstitucional, tanto pelos riscos de manipulação como pela desproporção do
custo econômico da medida.
“Esse modelo de votação (com urnas
eletrônicas), introduzido aqui há mais de 20 anos, fez com que o Brasil se
tornasse referência mundial no assunto. Nessa perspectiva, não há qualquer
risco de fraude objetivamente evidenciado que justifique a introdução de um
mecanismo adicional de fiscalização cuja operacionalização envolve grandes
dificuldades e custos”, disse, em seu voto, o ministro Luís Roberto Barroso,
presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Tendo em vista que Jair Bolsonaro não tem
nenhuma prova contra as urnas eletrônicas, fica evidente que a sua insistência
a respeito do voto impresso não é uma tentativa de aumentar a confiabilidade
das eleições. Tal como fez Donald Trump nos Estados Unidos, seu objetivo é
precisamente disseminar a desconfiança no sistema eleitoral, para que seus
apoiadores rejeitem a futura derrota nas urnas.
Cabe ao Congresso rejeitar esse atentado
contra a democracia. A PEC 135/19 é uma explícita manobra do bolsonarismo
contra as eleições. Não há respeito ao voto, não há regime democrático, sem
respeito ao resultado das urnas.
A delação e a Constituição
O Estado de S. Paulo
O uso indevido da delação gera ainda mais
desequilíbrios ao sistema penal
O ministro Edson Fachin encaminhou ao plenário virtual do Supremo Tribunal Federal (STF) o recurso da Procuradoria-Geral da República (PGR) que contesta a homologação da delação premiada do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral. Trata-se de uma excelente oportunidade para o colegiado do Supremo, à luz da experiência destes anos em que o instituto foi incorporado à legislação brasileira, proporcionar uma aplicação da colaboração premiada mais madura e em maior conformidade com os princípios constitucionais.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a
delação foi importada de outro sistema jurídico, com pressupostos e regras
diferentes dos daqui. Feita sem os devidos cuidados, sua incorporação ao
ordenamento brasileiro acarretou não pequenos problemas. Por exemplo, em 2019,
em respeito ao princípio da ampla defesa, o Supremo precisou definir que, nos
processos penais com réus delatores e delatados, estes tinham o direito de
apresentar por último suas alegações finais.
Além disso, as partes envolvidas na delação
têm atributos diferentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, a promotoria está
sujeita a constante controle popular, uma vez que os cargos são preenchidos por
eleição, e não por concurso. Aqui, a colaboração premiada ampliou os poderes do
Ministério Público e da Polícia Federal – por exemplo, negociam a pena com o
colaborador –, mas suas responsabilidades continuaram as mesmas.
Ao lidar com as delações, o Judiciário deve
ter especial zelo com o princípio da presunção de inocência e com a proteção da
honra. Isso se aplica a todas as colaborações premiadas, envolvam ou não
ministros do Supremo. Na delação de Sérgio Cabral, há acusações contra o
ministro Dias Toffoli.
Uma colaboração premiada pode destruir a
honra de uma pessoa ou em certos casos a reputação da instituição à qual ela
está vinculada. Por isso, cabe à Justiça ser rigorosa, fazendo uma apuração
exaustiva dos fatos acusatórios antes de dar-lhes publicidade.
A Lei 13.964/2019 definiu parâmetros
precisos, não discricionários, sobre o momento em que o conteúdo de uma delação
pode se tornar público. “O acordo de colaboração premiada e os depoimentos do
colaborador serão mantidos em sigilo até o recebimento da denúncia ou da
queixa-crime, sendo vedado ao magistrado decidir por sua publicidade em
qualquer hipótese.”
A delação nada mais é do que a palavra de
uma pessoa envolvida em práticas criminosas, relatando crimes de terceiros, em
troca de uma pena menor. Não há contexto de isenção. Por isso, seria equivocado
tomar essas declarações como verdadeiras, sem antes realizar uma rigorosa
apuração.
Precisamente porque o delator é parte
interessada, a delação não é condição suficiente para condenar criminalmente
uma pessoa. Em sua versão original, a Lei 12.850/13 já dispunha que “nenhuma
sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de
agente colaborador”.
Depois de seis anos de vigência da lei – e
com a experiência de uma excessiva e desproporcional valorização da palavra do
delator ao longo desse período –, o Congresso fixou limites ainda mais precisos
para o valor probatório da delação. “Nenhuma das seguintes medidas será
decretada ou proferida com fundamento apenas nas declarações do colaborador:
(i) medidas cautelares reais ou pessoais; (ii) recebimento de denúncia ou
queixa-crime; e (iii) sentença condenatória”, dispôs a Lei 13.964/2019.
Além disso, para que o sistema penal possa
funcionar com um mínimo de segurança, delações falsas ou incompletas devem ser
tratadas com rigor. Muitas vezes, a Justiça permitiu aditamentos e remendos – o
que faz com que a palavra do delator mereça ainda menos crédito.
À luz da Constituição, cabe ao Supremo
corroborar os critérios definidos pelo Congresso em 2019, conferindo à delação
o valor que lhe cabe, sem exageros e sem ingenuidades. Em vez de contribuir
para reduzir a impunidade, seu uso indevido gera ainda mais desequilíbrios ao
sistema penal, além de desrespeitar importantes princípios constitucionais.
O dinheiro curto e os serviços
O Estado de S. Paulo
Também o setor de serviços caiu para
patamar inferior ao da pré-pandemia
Com dinheiro curto e ainda acuadas pela pandemia, as famílias deram pouco suporte, nos últimos meses, à recuperação dos serviços, um setor especialmente importante como fonte de empregos. Como a indústria e o varejo, esse grande conjunto de atividades, onde se incluem alimentação, hospedagem, turismo, transporte, comunicação e serviços pessoais, entre outros, perdeu impulso depois da reação prolongada até o trimestre final de 2020. Em março, o volume de serviços prestados foi 4% menor que em fevereiro. O balanço de 12 meses mostra uma queda de 8% em relação ao período imediatamente anterior.
Com o recuo de março, o setor ficou 2,8%
abaixo do patamar de fevereiro do ano passado, imediatamente anterior ao baque
causado pela pandemia. Como no caso de outros segmentos, faltou combustível
para a continuação da retomada. A reação dos serviços começou em junho, com um
mês de atraso em relação ao comércio varejista e à indústria. Com o crescimento
de 4,6% contabilizado em fevereiro, pela primeira vez o setor superou o nível
anterior à crise sanitária.
Segundo o gerente da pesquisa, Rodrigo
Lobo, restrições impostas por causa do avanço da pandemia explicam as novas
perdas do setor de serviços, embora as medidas tenham sido “menos impactantes”
que as do ano anterior. Perdas importantes foram certamente causadas por limitações
impostas ao funcionamento de vários serviços. Além disso, autoridades locais e
estaduais mantiveram campanhas contra aglomerações e tentaram limitar a
movimentação de pessoas. Mas é difícil evitar a referência a outros fatores.
Não há como examinar o desempenho dos
serviços sem olhar a situação dos consumidores. O desemprego é referência
incontornável, hoje, para essa discussão. Os últimos dados gerais do mercado de
trabalho, do trimestre dezembro-fevereiro, indicam desocupação de 14,4% da
força de trabalho, uma das maiores do mundo. Nada permite, por enquanto, supor
uma grande mudança nos meses seguintes.
Uma desocupação tão grande afeta os gastos
de milhões de famílias. Parte significativa desse quadro resulta da crise do
setor de serviços, normalmente um grande empregador. O efeito, nesse caso como
em muitos outros, realimenta a causa. Com tantos desocupados, é inevitável uma
forte redução das despesas com bens e serviços.
Os serviços prestados às famílias
diminuíram 27% em março. No primeiro trimestre, foram 25,4% inferiores ao
volume de janeiro a março de 2020. Em 12 meses a perda acumulada foi de 39,8%.
De modo geral, a distribuição dos números da pesquisa corresponde, sem
surpresa, às observações do dia a dia. O transporte aéreo diminuiu 10,2% em
março e 43,4% em 12 meses. Isso reflete a redução do turismo e também das
viagens motivadas por trabalho.
Em contrapartida, os serviços de informação
e comunicação cresceram 1,9% em março e no primeiro trimestre superaram por
3,5% igual período de 2020. Os serviços de tecnologia de informação avançaram
4,1% de fevereiro para março e 10,2% em 12 meses. Esses números ilustram com
clareza as mudanças ocorridas, desde o aparecimento da pandemia no Brasil, nas
formas de trabalho e na rotina dos trabalhadores e de suas famílias, incluído o
ensino a distância.
Também tem crescido (3,7% em março e 4,5%
em 12 meses) o grande conjunto formado por “outros serviços”, onde se incluem
corretoras de títulos e outras atividades financeiras, serviços de arquitetura
e de engenharia e assistência jurídica, entre outros componentes.
Também parece razoável levar em conta as
prioridades dos consumidores, especialmente num quadro de dinheiro curto,
desemprego alto e incertezas. No conjunto dos gastos, a alimentação deve
aparecer como preocupação número um para a maioria das famílias. Os dados do
varejo confirmam essa ideia, mostrando a evolução mais firme das despesas em
supermercados. Nessa escala, a maior parte dos gastos com serviços deve ficar
abaixo das despesas com bens. Não basta considerar restrições impostas pelo
enfrentamento da pandemia. O aperto dos consumidores também conta.
Abrir o leque
Folha de S. Paulo
Compra privada de vacina não concorre com o
SUS; recusa se funda em preconceito
Continua exasperante a lentidão da
vacinação contra a Covid-19 no Brasil. Quatro meses após iniciado o programa
nacional, apenas 12 em cada 100 adultos foram vacinados com as duas doses do
imunizante. Em razão desse fracasso, a velocidade da epidemia, a julgar pelas
UTIs paulistas, parou de decrescer e estagnou em nível altíssimo.
Enquanto isso, a fábrica de vacinas do
Butantan está parada à espera de insumos cuja entrega, graças à belicosidade
sinofóbica do presidente Jair Bolsonaro, o governo chinês perdeu o estímulo de
acelerar. A outra manufatura no Brasil, a da Fiocruz, também deverá interromper
momentaneamente a produção pelo mesmo motivo.
Desestimulado também subjaz o setor
privado, que já poderia estar ajudando na contratação de vacinas, de modo
complementar e não predatório à ação do governo.
A regra vigente só permite que particulares
adquiram imunizantes para seus colaboradores após cumprida toda a etapa de
aplicações nos grupos prioritários do programa público, que somam quase 80
milhões. Metade das aquisições privadas tem de ser doada ao SUS.
Entretanto Câmara dos Deputados aprovou no
início do mês passado uma alteração
legal que faculta a aquisição particular de vacinas liberadas
pela Anvisa a qualquer tempo para aplicação gratuita em colaboradores da
organização privada.
O projeto veda a compra de fornecedores que
ainda tenham contratos pendentes com o governo, obriga a vacinação privada a
observar a ordem de prioridade do Ministério da Saúde para todo o país e prevê
a doação ao SUS de metade do volume adquirido.
O diploma está parado há 40 dias nos
escaninhos do Senado, mas o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), não
demonstra apreço por sua tramitação. Parece temer uma reação calcada mais em
preconceitos que na realidade e nas perspectivas desse mercado para os próximos
meses e anos.
Com o programa de imunização prestes a ser
encerrado em alguns países desenvolvidos e a probabilidade da entrada de novos
ofertantes de vacinas, agentes privados terão mais flexibilidade e agilidade
para trabalhar com volumes mais baixos —e preços mais altos—, que passariam ao
largo de grandes compradores como governos.
Além disso, imunizantes contra o Sars-Cov-2
tendem a integrar a rotina de vacinações a partir de 2022, como ocorre com os
contra vírus da influenza. Empresas precisam acessar os fornecedores para
oferecer doses a quem não fará parte dos grupos de aplicação pública.
Seria apenas um desperdício de
oportunidades, em nada benéfico para o programa público de vacinação, alijar o
Brasil desse mercado, que existirá goste-se dele ou não.
O bebê e a água do banho
Folha de S. Paulo
Constituinte chilena terá desafio de prover
mudança sem minar acertos do país
É notória e documentada a impopularidade do
governo conservador do Chile, mas sua derrota na
eleição para a assembleia que vai elaborar a nova Constituição do país superou
todas as expectativas.
No pleito realizado no sábado e no domingo
(15 e 16), o bloco de partidos alinhados ao presidente Sebastián Piñera
conquistou apenas 37 das 155 cadeiras do colegiado, ou 24%. Com tal
participação, não conseguirá barrar sozinho projetos indesejados —cada norma
dependerá do voto de dois terços dos constituintes.
Legendas de esquerda e centro-esquerda
obtiveram 53 assentos (34%), enquanto candidatos sem vínculos partidários, os
grandes vitoriosos, ficaram com 65 (42%), incluindo 17 reservados a indígenas.
Apresenta-se, ao menos em tese, um cenário
favorável ao reformismo e compatível com a impressionante onda de protestos
populares que sacudiu o país a partir de outubro de 2019 —um movimento
contrário ao establishment inevitavelmente comparado às jornadas de 2013 no
Brasil.
O processo levou a um plebiscito, no ano
passado, em que cerca de 80% dos votantes decidiram substituir a Constituição
herdada, com modificações, dos tempos ditatoriais do general Augusto Pinochet,
cujo arbítrio sangrento se prolongou de 1973 a 1990.
A nova empreitada embute riscos óbvios,
todavia. O Chile, afinal, está longe de ser um país que não tenha nada a
perder.
Nas últimas décadas de democracia, foi
capaz de combinar alternância de poder, estabilidade institucional e progresso
socioeconômico. Hoje, detém a melhor colocação latino-americana no Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH, calculado pelas Nações Unidas) e o 43º lugar no
ranking mundial (o Brasil é o 84º).
Padece, sim, de elevada desigualdade social
—embora não tão aguda quanto a brasileira— e reúne condições de expandir os
gastos e os serviços públicos. O desafio será fazê-lo sem abandonar a prudência
orçamentária que sustentou o avanço chileno até aqui.
A incerteza se amplia com a volatilidade
política e o enfraquecimento dos partidos tradicionais. Em novembro, além
disso, haverá eleições presidenciais.
A recém-eleita Assembleia Constituinte deve
responder às demandas por mudança, nem sempre coerentes entre si, sem sucumbir
à tentação populista. Essa seria uma grande inovação no continente.
Senado precisa mudar projeto de licenciamento da Câmara
Valor Econômico
Ao aprovar uma legislação ruim, o Centrão
presta um serviço auxiliar valioso à operação de desmonte
A Câmara dos Deputados aprovou rapidamente
um projeto de lei que muda as regras do licenciamento ambiental no país. Com
300 votos a favor e 122 contrários, o Centrão e a bancada ruralista liquidaram
um assunto que se arrasta por 17 anos no Congresso. Pressões externas de
governos, investidores e empresas por mais, e não menos, cuidado com o ambiente
foram de novo ignoradas.
O projeto 3279, aprovado com várias
mudanças, é de 2004, de autoria do deputado Luciano Zica, do PT. A necessidade
de uma legislação nacional sobre o licenciamento mostrou-se necessária após
quase duas décadas em que ela foi aplicada por meio de uma miríade de decretos,
resoluções, portarias e outros expedientes infralegais.
O resultado é que o processo de
licenciamento tornou-se moroso demais, burocrático demais e muitas vezes
ineficiente para os objetivos a que se propõe. A melhoria da legislação,
consolidando regras, era tarefa necessária a que o Congresso deveria dedicar-se
com atenção - e bem antes do que o fez.
O projeto, com relatoria do deputado Neri
Geller (PP-MT), contempla medidas que a bancada ruralista tenta aprovar há
muito. Ele amplia os casos em que o licenciamento é dispensado e cria o
Licenciamento por Adesão e Compromisso, pelo qual a instalação e operação de
uma atividade é autorizada mediante uma autodeclaração do interessado de que se
compromete a cumprir requisitos ambientais vigentes.
Da mesma forma que, antes, o processo era
lento e protegia o ambiente por default, o projeto aprovado agora pela Câmara
tem o erro contrário: a necessidade de pedir o licenciamento virou exceção, não
a regra.
No licenciamento autodeclaratório estão
enquadradas praticamente todas as atividades agrícolas, a pecuária extensiva e
semi-intensiva, independente de porte, e a pecuária intensiva de pequeno porte.
O que é mais grave, a ampliação de capacidade ou pavimentação em instalações
preexistentes também poderá ser feita por meio desse expediente. As estradas e
hidrelétricas são as principais vias de que propiciam o aumento do desmatamento
na Amazônia. O PL exclui análise de impacto e medidas de prevenção nas terras
indígenas e quilombolas não demarcadas. O presidente Jair Bolsonaro, por sua
vez, declarou com todas as letras que em sua gestão não mais demarcará essas
terras.
O projeto dispensa outros setores, além do
agropecuário, do licenciamento prévio, e vários deles têm impactos ambientais
óbvios. É o caso das estações de tratamento de água e esgoto e obras de serviço
público de distribuição de energia elétrica, por exemplo.
Se por um lado o PL aprovado na Câmara
consolida e unifica regras e procedimentos, por outro abre amplo leque de
discrição para os Estados e municípios, que ganham poder para estabelecer ou
dispensar critérios de licenciamento. Ambientalistas apontam com razão o risco
real de arbitragem regulatória para atração de investimentos pelos entes
federativos, com base em menores exigências ambientais ou mesmo sua dispensa.
Os flancos desguarnecidos da proteção
ambiental abertos pelo projeto da Câmara não são nenhuma surpresa. Há anos que
praticamente seus pontos principais foram cogitados por todos os relatores da
matéria alinhados com a bancada ruralista. Essas linhas de ação não mudaram
substancialmente quando a relatoria passou às mãos do deputado Kim Kataguiri
(DEM-SP), no período de Rodrigo Maia na Presidência da Câmara.
Com a ascensão de Arthur Lira, a relatoria
passou às mãos do Centrão e a novidade, no caso, foi a vontade política de
arregimentar a maioria conservadora para por fim a uma disputa crônica. A
oposição não foi capaz, durante os governos petistas, mais sensíveis à causa
ambiental, de arregimentar maioria para a aprovação de uma lei de licenciamento
com a sua marca. Ou não houve interesse dos governos petistas de afrontar
aliados conservadores no Congresso para esse fim.
Mas a existência de uma lei não muda de
figura os problemas ambientais. Faltam recursos materiais e humanos para uma
fiscalização eficiente e uma Justiça que puna tempestivamente os infratores. O
governo Bolsonaro neutralizou a fiscalização, incentivando ao não cumprimento
de leis que o próprio Planalto despreza. Ao aprovar uma legislação ruim, o
Centrão não eliminará novas disputas judiciais, mas presta um serviço auxiliar
valioso à operação de desmonte patrocinada por Bolsonaro. Resta a chance de o
Senado modificar o projeto em direção restritiva.
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