quarta-feira, 19 de maio de 2021

Daniel Rittner - A Israel imaginária do universo bolsonarista

- Valor Econômico

Comparações com o Holocausto ofendem comunidade judaica

Identificados frequentemente como base de apoio do presidente Jair Bolsonaro, pelo engajamento de integrantes da comunidade desde a campanha eleitoral e pelo uso recorrente de bandeiras de Israel em atos pró-governo, muitos judeus querem livrar-se do rótulo de que são uma “massa uniforme” vinculada ao bolsonarismo.

Para algumas entidades judaicas e expoentes da comunidade, isso reflete desconhecimento e ignora um incômodo cada vez maior com episódios recentes que relativizam o Holocausto ou até flertam com antissemitismo.

No caso mais escandaloso, Roberto Alvim foi demitido da Secretaria Especial de Cultura após discurso com estética nazista e reproduzindo falas de Joseph Goebbels. Ex-ministros compararam ações da Polícia Federal e medidas de isolamento social, na pandemia, com a Noite dos Cristais e com campos de concentração. Um neoaliado relacionou os judeus com a prática de infanticídio. Símbolos apropriados por neonazistas já apareceram em manifestações.

Muitos judeus querem desfazer a impressão de que eles - assim mesmo, indevidamente, no plural - apoiaram a eleição de Bolsonaro e continuam dando suporte ao presidente.

A imagem colou com o vínculo de alguns integrantes proeminentes da comunidade, como os empresários Meyer Nigri (Tecnisa) e Elie Horn (Cyrela), além do publicitário Fabio Wajngarten. A proximidade declarada com o governo de Israel reforça essa fama. Binyamin Netanyahu foi o principal líder estrangeiro na posse de Bolsonaro e bandeiras israelenses sempre estão em manifestações pró-governo.

“Quem critica o governo Bolsonaro ouve frequentemente que não é judeu de verdade”, afirma Beni Iachan, um dos coordenadores do coletivo Judeus pela Democracia. “A comunidade judaica, como qualquer segmento da sociedade brasileira, foi muito contaminada pela polarização atual. O que tentamos é reafirmar a nossa pluralidade. Existe judeu rico e judeu pobre, de direita e de esquerda, radical e moderado, de extrema direita e comunista.”

Um incômodo comum em segmentos da comunidade é o uso frequente de símbolos ligados ao que chamam de “Israel imaginária” do bolsonarismo: militarizada, branca, adepta de artes marciais, um armazém de armas, espécie de QG pronto para combater o Islã e servir de escudo do Ocidente. Carlos e Eduardo Bolsonaro, por exemplo, já postaram fotos em redes sociais vestindo camisetas do Mossad - o temido serviço secreto israelense.

A “Israel real”, afirmam, apresenta aspectos diferentes e frequentemente ignorados pelos ultraconservadores: cosmopolita, abriga uma das maiores paradas gays do mundo, lidera na aplicação medicinal de cannabis, já descriminalizou a posse de maconha, tem uma legislação bastante flexível sobre o aborto.

“O governo se apropria de uma Israel imaginária, o bolsonarismo se identifica com a Israel do Reino de Salomão, que tem uma dimensão tática. A cada crítica, posa-se ao lado de uma bandeira de Israel, que serve como uma higienização de discursos preconceituosos e até racistas”, opina Michel Gherman, coordenador do Núcleo de Estudos Judaicos da UFRJ.

Como exemplos, Gherman cita duas falas do próprio Bolsonaro quando era pré-candidato. Uma foi Campina Grande (PB): “As leis devem existir para defender as maiorias. As minorias se adequam ou simplesmente desapareçam”. Outra teve o clube A Hebraica, no Rio de Janeiro, como palco: “Fui num quilombola em Eldorado Paulista. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Acho que nem para procriador serve mais.”

Para o diretor do Instituto Brasil-Israel (IBI), Daniel Douek, esse episódio acabou selando a imagem de apoio dos judeus ao candidato: “Quando a comunidade, ali na plateia da Hebraica, ri de piadas racistas e misóginas, é como se estivesse autorizando a circulação de um discurso politicamente incorreto, por ser a herdeira do ápice de discriminação no século XX”.

Na avaliação de Douek, a própria esquerda reforça o estereótipo de que judeus são pró-Bolsonaro. “Setores progressistas costumam enxergar quem aplaudiu Bolsonaro dentro da Hebraica como representação mais fiel da comunidade judaica. É um equívoco. A presença do [deputado] Hélio Negão nas viagens ou as falas da [ministra] Damares Alves em defesa das mulheres não fazem esses mesmos setores progressistas estarem convencidos de que os negros ou as mulheres, como um grupo, são base de Bolsonaro.”

Em julho do ano passado, o Observatório Judaico de Direitos Humanos no Brasil publicou um relatório apontando aumento de manifestações de intolerância e atitudes antissemitas. Em Unaí (MG), um fazendeiro foi filmado ostentando uma suástica no braço. Pesquisa global da Anti-Defamation League indicou que a proporção de brasileiros que cultivam algum sentimento antijudaico cresceu de 19%, em 2014, para 26%, em 2019.

“Eu realmente não acredito que este seja um governo antissemita, mas é um governo com a presença de alguns antissemitas e que chancela discursos antissemitas”, afirma o sociólogo Jayme Brener, ex-diretor do observatório.

Diante do início dos trabalhos da CPI da Pandemia, comparações com o nazismo e com o Holocausto voltaram a surgir, tanto à direita quanto à esquerda. O deputado Marcos Feliciano (PSC-SP), crítico da comissão, comentou: “Não é uma CPI. É uma câmara de gás”. Em depoimento recente, o senador Rogério Carvalho (PT-SE) disse que Bolsonaro transformou o Brasil “numa câmara de vírus, a exemplo do Holocausto” e que o “senhor [Fabio] Wajngarten, até pela sua origem, deveria saber disso”.

Para o advogado Daniel Leon Bialski, presidente da Hebraica em São Paulo e vice-presidente da Confederação Israelita do Brasil (Conib), é urgente interromper as comparações e frear o discurso de ódio - mesmo, segundo ele, quando as referências indevidas acontecem menos por racismo e mais por desconhecimento histórico. “A nossa conduta, como liderança da comunidade, é conscientizar. Algumas pessoas com quem conversamos pedem desculpas, apagam postagens e se justificam”, diz Bialski, lembrando que isso não é exclusividade de nenhuma corrente política.

“Não existe a possibilidade de comparar qualquer coisa que estejamos vivendo com o horror dos campos de concentração. A banalização do Holocausto entristece e ofende toda a comunidade, principalmente os sobreviventes e descendentes das vítimas do nazismo. Isso só fomenta o discurso de ódio.”

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