Comparações
com o Holocausto ofendem comunidade judaica
Identificados
frequentemente como base de apoio do presidente Jair Bolsonaro, pelo
engajamento de integrantes da comunidade desde a campanha eleitoral e pelo uso
recorrente de bandeiras de Israel em atos pró-governo, muitos judeus querem
livrar-se do rótulo de que são uma “massa uniforme” vinculada ao bolsonarismo.
Para
algumas entidades judaicas e expoentes da comunidade, isso reflete
desconhecimento e ignora um incômodo cada vez maior com episódios recentes que
relativizam o Holocausto ou até flertam com antissemitismo.
No caso mais escandaloso, Roberto Alvim foi demitido da Secretaria Especial de Cultura após discurso com estética nazista e reproduzindo falas de Joseph Goebbels. Ex-ministros compararam ações da Polícia Federal e medidas de isolamento social, na pandemia, com a Noite dos Cristais e com campos de concentração. Um neoaliado relacionou os judeus com a prática de infanticídio. Símbolos apropriados por neonazistas já apareceram em manifestações.
Muitos
judeus querem desfazer a impressão de que eles - assim mesmo, indevidamente, no
plural - apoiaram a eleição de Bolsonaro e continuam dando suporte ao
presidente.
A
imagem colou com o vínculo de alguns integrantes proeminentes da comunidade,
como os empresários Meyer Nigri (Tecnisa) e Elie Horn (Cyrela), além do publicitário
Fabio Wajngarten. A proximidade declarada com o governo de Israel reforça essa
fama. Binyamin Netanyahu foi o principal líder estrangeiro na posse de
Bolsonaro e bandeiras israelenses sempre estão em manifestações pró-governo.
“Quem
critica o governo Bolsonaro ouve frequentemente que não é judeu de verdade”,
afirma Beni Iachan, um dos coordenadores do coletivo Judeus pela Democracia. “A
comunidade judaica, como qualquer segmento da sociedade brasileira, foi muito
contaminada pela polarização atual. O que tentamos é reafirmar a nossa
pluralidade. Existe judeu rico e judeu pobre, de direita e de esquerda, radical
e moderado, de extrema direita e comunista.”
Um
incômodo comum em segmentos da comunidade é o uso frequente de símbolos ligados
ao que chamam de “Israel imaginária” do bolsonarismo: militarizada, branca,
adepta de artes marciais, um armazém de armas, espécie de QG pronto para
combater o Islã e servir de escudo do Ocidente. Carlos e Eduardo Bolsonaro, por
exemplo, já postaram fotos em redes sociais vestindo camisetas do Mossad - o
temido serviço secreto israelense.
A
“Israel real”, afirmam, apresenta aspectos diferentes e frequentemente
ignorados pelos ultraconservadores: cosmopolita, abriga uma das maiores paradas
gays do mundo, lidera na aplicação medicinal de cannabis, já descriminalizou a
posse de maconha, tem uma legislação bastante flexível sobre o aborto.
“O
governo se apropria de uma Israel imaginária, o bolsonarismo se identifica com
a Israel do Reino de Salomão, que tem uma dimensão tática. A cada crítica,
posa-se ao lado de uma bandeira de Israel, que serve como uma higienização de
discursos preconceituosos e até racistas”, opina Michel Gherman, coordenador do
Núcleo de Estudos Judaicos da UFRJ.
Como
exemplos, Gherman cita duas falas do próprio Bolsonaro quando era
pré-candidato. Uma foi Campina Grande (PB): “As leis devem existir para
defender as maiorias. As minorias se adequam ou simplesmente desapareçam”.
Outra teve o clube A Hebraica, no Rio de Janeiro, como palco: “Fui num quilombola
em Eldorado Paulista. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não
fazem nada. Acho que nem para procriador serve mais.”
Para
o diretor do Instituto Brasil-Israel (IBI), Daniel Douek, esse episódio acabou
selando a imagem de apoio dos judeus ao candidato: “Quando a comunidade, ali na
plateia da Hebraica, ri de piadas racistas e misóginas, é como se estivesse
autorizando a circulação de um discurso politicamente incorreto, por ser a
herdeira do ápice de discriminação no século XX”.
Na
avaliação de Douek, a própria esquerda reforça o estereótipo de que judeus são
pró-Bolsonaro. “Setores progressistas costumam enxergar quem aplaudiu Bolsonaro
dentro da Hebraica como representação mais fiel da comunidade judaica. É um
equívoco. A presença do [deputado] Hélio Negão nas viagens ou as falas da
[ministra] Damares Alves em defesa das mulheres não fazem esses mesmos setores
progressistas estarem convencidos de que os negros ou as mulheres, como um
grupo, são base de Bolsonaro.”
Em
julho do ano passado, o Observatório Judaico de Direitos Humanos no Brasil
publicou um relatório apontando aumento de manifestações de intolerância e
atitudes antissemitas. Em Unaí (MG), um fazendeiro foi filmado ostentando uma
suástica no braço. Pesquisa global da Anti-Defamation League indicou que a
proporção de brasileiros que cultivam algum sentimento antijudaico cresceu de
19%, em 2014, para 26%, em 2019.
“Eu
realmente não acredito que este seja um governo antissemita, mas é um governo
com a presença de alguns antissemitas e que chancela discursos antissemitas”,
afirma o sociólogo Jayme Brener, ex-diretor do observatório.
Diante
do início dos trabalhos da CPI da Pandemia, comparações com o nazismo e com o
Holocausto voltaram a surgir, tanto à direita quanto à esquerda. O deputado
Marcos Feliciano (PSC-SP), crítico da comissão, comentou: “Não é uma CPI. É uma
câmara de gás”. Em depoimento recente, o senador Rogério Carvalho (PT-SE) disse
que Bolsonaro transformou o Brasil “numa câmara de vírus, a exemplo do
Holocausto” e que o “senhor [Fabio] Wajngarten, até pela sua origem, deveria
saber disso”.
Para
o advogado Daniel Leon Bialski, presidente da Hebraica em São Paulo e
vice-presidente da Confederação Israelita do Brasil (Conib), é urgente
interromper as comparações e frear o discurso de ódio - mesmo, segundo ele,
quando as referências indevidas acontecem menos por racismo e mais por
desconhecimento histórico. “A nossa conduta, como liderança da comunidade, é
conscientizar. Algumas pessoas com quem conversamos pedem desculpas, apagam
postagens e se justificam”, diz Bialski, lembrando que isso não é exclusividade
de nenhuma corrente política.
“Não existe a possibilidade de comparar qualquer coisa que estejamos vivendo com o horror dos campos de concentração. A banalização do Holocausto entristece e ofende toda a comunidade, principalmente os sobreviventes e descendentes das vítimas do nazismo. Isso só fomenta o discurso de ódio.”
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