Graças
a um governo errático, brigar com o Brasil como se ele fosse uma pessoa física
ganhou legitimidade
Penso
que todo mundo sempre quis sair mais do seu país do que de sua sociedade. Vamos
para Paris ou New York, mas sentimos falta da comida e das fofocas, esses
símbolos de nossos costumes. Morar é bom, mas viver é uma m...! - como
confirmava Tom Jobim.
Muitos
deram adeus às suas pátrias por motivos trágicos, e os Estados Unidos são prova
de uma coletividade cuja população é feita de milhões de netos e filhos de
imigrantes - de nativos que por livre vontade ou por motivos dramáticos foram
obrigados a deixar sua terra natal.
No
Brasil, este desejo é um paradoxal desabafo, geralmente feito em família ou
entre amigos. Ele se amplia e se reduz de acordo com épocas históricas e
governos. Nas ditaduras (tanto a de Vargas quanto a militar), muitos deixaram o
País por perseguição política.
Ser obrigado a sair da terra onde se nasceu é “perder o chão”. Equivale a morrer ou ser encarcerado. Não se trata apenas de uma cruel punição política. É um assassinato espiritual decretado com o paradoxo de o morto continuar vivo. Veda-se o direito de participação, mas, de fato, esta interdição bloqueia a vida do condenado, impedindo-o de usufruir das muitas dimensões cruciais de todas as vidas. Como um paradoxo, porém, o banido pode retornar com mais potência, como foi o caso modelar do Conde de Monte Cristo e de outros degredados políticos. Antigamente, era a excomunhão que transformava alguém em um leproso social; hoje, Deus foi substituído pela política como credo. Neste sentido, vale lembrar que o exílio, tanto em Roma quanto na Grécia dos velhos tempos, era mais fatal do que a morte.
Neste
Brasil polarizado, surge um “cancelamento” - um exílio interno sentenciado por
“democratas”. Uma exclusão repleta de desfaçatez na qual um grupo ou uma pessoa
são postos no “gelo” (quem sabe siberiano...), em uma vã tentativa de congelar
suas opiniões, razões e realizações. A lista, que, como toda lista, tem sempre
dois lados, está em vigência. Nela, o inimigo só se descobre como inimigo
quando se vê caluniado ou não reconhecido.
Não
se pode confundir, sem preconceito, o direito a opinar com crime. Só os
nazi-fascistas fazem isso, mas o problema é que, no Brasil, há um nazi-fascismo
inconsciente. A perversão nazi-fascista-stalinista acontece justamente quando
se criminalizam opiniões e a totalidade (o partido, o grupo ou o coletivo)
divide o tecido público ao meio. É como mutilar um corpo seccionando o seu lado
direito do seu lado esquerdo.
E
o gravíssimo e o absurdo, neste momento, é que quem mais promove tal sectarismo
é o presidente da República. O vírus mortal polariza biologicamente e um
virulento Jair Bolsonaro polariza moral e ideologicamente.
Sempre
ouvi o “quero ir embora do Brasil” mais como um desabado ou uma fantasia. Mas,
nestes tempos de “danação”, tenho testemunhado brasileiros deixando
efetivamente o Brasil, e muitos adotando e comprando uma dupla cidadania.
A
pandemia tem chamado atenção para a premente necessidade de uma corrente
mundial de igualdade, solidariedade e abertura - será que nos esquecemos deste
conceito generoso e fundamental? Tal corrente torna o mundo mais justo e
humano. Mas o que se constata no Brasil é um reacionário fechamento.
Há
até quem seja contrário à construção de pontes ou de se criar uma rosiana
terceira margem do rio. Um ponto capaz de nos desembaraçar das exigências e dos
extremos de modo a vê-los em sua natureza sectária que detesta escolhas. Ora, o
escolher é, em condições normais, o avatar do discernimento, da prudência e do
democrático.
Não
para impedir posicionamentos, mas para evitar o pior que o presidente da
República exprime em um absurdo e enlouquecido “Só Deus me tira daqui”. Se as
facções invocam igualmente o aval de Deus, o resultado só pode ser o conflito e
a destruição das margens e do próprio rio. Um louco não pode justificar a nossa
eventual maluquice, ofuscando a nossa lucidez.
O
centro, dizem, é o “conhece-te a ti mesmo”. É a vacina contra os arroubos, as
hipocrisias, as tentações proféticas e o tirar vantagem das polarizações. A
luta é indispensável, mas não se pode deixar de combinar as armas.
Sempre
ouvi os surtos de onipotência do clássico “sair do Brasil”. Hoje, um presidente
irracional, cercado de filhos radicais de direita e por uma maioria de
políticos trêfegos, legalistas, populistas, ressentidos e hipócritas, fez com
que a fantasia de “ir embora deste país de m...” virasse mantra. Graças,
reitero, a um governo errático e a uma lamentável tradição de governar com
malandragem, autoritarismo e roubalheira, esse desmedido brigar com o Brasil
como se ele fosse uma pessoa física ganhou legitimidade.
Se
acusar negativamente o Brasil era parte da própria cultura “culta” brasileira
como testemunho de um “pensamento crítico” sobre um país periférico,
colonizado, mestiçado, doente e, ao mesmo tempo, governado por uma elite
familística “branca” e educada, criticar e negar o Brasil iam juntos. E o pior
é que o governo Bolsonaro, com sua hoje comprovada aliança, confirma essa
visada antipatriótica.
*É Antropólogo social e escritor, autor de ‘Fila e Democracia’
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