O Estado de S. Paulo
Os bandeirantes escravizaram, sim, mas não
só por isso devem ser julgados
“Somos obrigados a conquistar por polegadas a terra que Vossa Alteza nos fez mercê por léguas" (Carta de Duarte Coelho, donatário de Pernambuco, ao rei dom João III, em 1546)
A épica empreitada da colonização do Brasil
inscreve-se como uma das heroicas, árduas e trágicas páginas da grande aventura
humana para descobrir o que existia onde acabavam os mares, desta vez em
direção às terras que os mal chamados índios já ocupavam e viriam a ser
conhecidas como Novo Mundo. Homens de seu tempo, como todos os homens,
trouxeram os usos e costumes dos colonizadores, que não podem ser avaliados
pela perspectiva do retrovisor da História, que os julga a partir de valores
mais acordes com a contemporaneidade do que com a conformação social da
antiguidade.
O equívoco de revisar o passado com a
escala axiológica do presente avoluma-se como desvio histórico a confundir as
sucessivas gerações, a exemplo do nefasto espetáculo pirotécnico recém-encenado
no bairro paulistano de Santo Amaro. A turba ateou fogo à estátua do bandeirante
Borba Gato, estigmatizando-o como “escravocrata”, “assassino”, “bugreiro”,
“genocida”. Para início e fim de conversa, não há comprovação documental de que
o paulista Manuel Borba Gato (1628-1718) tenha sido um bugreiro sanguinário –
ainda que tenha participado da bandeira de apresamento liderada por seu sogro,
Fernão Dias Pais, o Caçador de Esmeraldas, de fato um escravizador de índios.
O que distingue Borba Gato na História do Brasil é sua participação na exploração do imenso continente desconhecido de que falou Duarte Coelho e, sobretudo, o protagonismo no ciclo do ouro, que devolveu à colônia a prosperidade que se ensaiara no então já superado ciclo do açúcar. Período de enorme expansão econômica, o da mineração propiciou crescimento da população, criação de mercado interno, expansão da pecuária e da agricultura, construção de malhas de transporte e de circulação de mercadorias a partir do Paraná e São Paulo. Como o posterior ciclo do café, o do ouro engendrou, segundo Celso Furtado em Formação Econômica do Brasil, “condições favoráveis ao desenvolvimento endógeno da colônia”.
Com o espírito desbravador dos
bandeirantes, Borba Gato descobriu ouro, fundou vilas, como a de Sabará, e
defendeu a exploração das minas em benefício dos brasileiros, desentendendo-se
com o autoritário administrador castelhano Rodrigo de Castelo Branco, de cuja
morte acabou sendo acusado. A partir daí, vagou como fugitivo durante 17 anos
pelos sertões, só recebendo o perdão real em 1700. Anistiado, ocupou cargos
públicos, a começar pela superintendência dos negócios da mineração. Nesse
posto continuou a defender os interesses dos brasileiros contra os reinóis, a
ponto de expulsar o grande contrabandista lusitano de ouro Manuel Nunes Viana,
episódio que deflagrou a Guerra dos Emboabas, epíteto que os “paulistas”
atribuíam aos portugueses que não paravam de acorrer às minas.
Borba Gato fez parte da linhagem de
destemidos empreendedores que viriam a ser os bandeirantes construtores do
Brasil. Gigantes como Antônio Raposo Tavares e sua lendária Bandeira de
Limites, um percurso de 10 mil quilômetros do Tietê ao Amazonas. A maior parte
do território percorrido pertencia à Espanha, pelo Tratado de Tordesilhas, mas
depois foi incorporado ao Brasil pelo Tratado de Madri, em 1750. Um feito
extraordinário que o historiador português Jaime Cortesão, em Raposo
Tavares e a Formação Territorial do Brasil, chamou de “a maior e mais épica
façanha não só do bandeirismo brasileiro, mas de todos os pioneiros do Novo
Mundo.” Para um oriundi, é motivo de orgulho divisar no Parque do
Ibirapuera o Monumento às Bandeiras, onde o italiano de Farnese Vitor Brecheret
cinzelou em granito o caldeirão étnico inicial do povo brasileiro, formado por
brancos europeus, negros africanos, índios e mamelucos.
Os bandeirantes escravizaram e dizimaram índios, sim, os primeiros mártires de uma colonização sangrenta, mas não só por isso devem ser julgados. Sua dadivosa obra foi reconhecida por historiadores da estatura de Afonso Taunay, Tito Lívio Ferreira e Viana Moog, e decantada pela sensibilidade poética de Oswald de Andrade e Vinicius de Moraes. Não eram santos, porém convém lembrar que santos também se entregaram a essa nefanda apropriação do ser humano usual na época, pois o posterior São José de Anchieta e seu superior Manuel da Nóbrega, ao mesmo tempo que protegiam os índios, tinham escravos negros. A seguir o que fizeram com Borba Gato, os revisionistas de retrovisor também poderiam mirar Tiradentes, Zumbi e o Quilombo de Palmares, onde houve escravidão de negros. Antes de se converter à abolição por influência meramente religiosa, a princesa Isabel também teve escravos, e há muitos outros exemplos cultuados de proprietários de gente. Se a revisão de hoje alveja os escravocratas, eles, e até negros que negociaram negros, como Zé Alfaiate, o maior traficante do Brasil, estão na linha da artilharia iconoclasta.
*Criminalista, foi presidente da Ordem dos Advogados do Brasil e deputado federal
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