Correio Braziliense
Havia um certo consenso
nacional e continuidade em torno da política externa brasileira
pós-redemocratização, a partir do governo de Sarney, que restabeleceu as
relações com Cuba e a China. Bolsonaro rompeu essa tradição
Se imaginarmos um triangulo ligando o Brasil
aos Estados Unidos e à China, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva precisa
traçar uma bissetriz entre os dois países que possibilite achar um ponto de
equilíbrio e sair do impasse em que se encontra, a partir de relações
bilaterais com o presidente Donald Trump, que hoje não existem, e com o
presidente Xi Jinping, cada vez mais próximas. O multilateralismo, no curto
prazo, não dá conta de evitar a escalada da crise.
Na geometria, um triângulo possui dois tipos de bissetrizes: internas e externas. Para não complicar a analogia, o que nos interessa aqui é o ponto de encontro das bissetrizes internas do triangulo. Imagine uma circunferência dentro do triângulo — seu centro é equidistante de todos os lados. Por isso, é chamado de “incentro”. Bissetrizes são traçadas com régua e compasso; na política, é muito mais difícil achar esse ponto de equilíbrio e equidistância.
A postura de Lula diante de Trump, expressa
na recusa em “se humilhar” e na decisão de acionar a Organização Mundial do
Comércio (OMC) e mobilizar o Brics, deve levar mais em conta a longa e complexa
tradição da política externa brasileira, considerando ainda uma contradição
interna que contrapõe o “iberismo” conservador e hierárquico, herdado do período
colonial, ao americanismo democrático e igualitário que inspirou nossa
modernização.
O ponto de sustentação da política externa
brasileira deve ser a vocação universalista, multilateral e emancipatória,
porém, sem perder de vista que somos uma nação — simultaneamente enraizada no
Ocidente e protagonista do Hemisfério Sul, com o qual dividimos o passado
colonial e a ambição do desenvolvimento.
Em um artigo recente, publicado na Revista
Política Democrática (Fundação Astrojildo Pereira), o embaixador e ex-ministro
da Fazenda Rubens Ricúpero ressalta que, desde o século XIX, a relação
Brasil-EUA tem sido marcada por uma assimetria estrutural. Ao mesmo tempo,
revela que o Brasil sempre oscilou entre o desejo de reconhecimento como nação
ocidental e o impulso autonomista.
Lula, ao colocar o Brics como eixo
alternativo de diálogo diante da agressão tarifária de Trump, reafirma essa
ambiguidade estratégica. Ele é coerente com a política externa independente inspirada
nos governos Jânio Quadros, João Goulart e Ernesto Geisel, que marcaram a busca
por autonomia na ordem mundial, sem abandonar os valores do Ocidente.
Regressão de valores
O que mudou? Ricúpero ressalta que o retorno
de Trump ao poder representa uma regressão nos valores iluministas que os EUA
legaram ao mundo. Sua retirada do Acordo de Paris e da Organização Mundial da
Saúde (OMS), seu unilateralismo econômico e seu ataque ao sistema multilateral
enfraquecem os princípios que tanto o Ocidente liberal quanto o Sul cooperativo
valorizam. Lula, ao se recusar a aceitar o tarifaço como fato consumado e ao
buscar apoio no Brics, rechaça esse “americanismo regressivo” e reivindica um
novo equilíbrio, sem o servilismo ideológico de Bolsonaro. Mas isso não pode
reeditar o antiamericanismo da Guerra Fria.
A autoridade internacional do Brasil precisa
da legitimidade multilateral, da institucionalidade democrática e do prestígio
dos fóruns plurais, como o Brics e a OMC — mesmo enfraquecidos. Mais
“pragmatismo responsável” de Geisel e do chanceler Azeredo da Silveira, e menos
alinhamento automático de Oswaldo Aranha. Essa crise não se resolverá no
gogó. Embaixador nos Estados Unidos de 1905 a 1910, Joaquim Nabuco, porém,
dizia que “não se fica grande por dar pulos”.
Havia um certo consenso nacional e continuidade
em torno da política externa brasileira pós-redemocratização, a partir do
governo Sarney, que restabeleceu as relações com Cuba e a China. O
ex-presidente Jair Bolsonaro rompeu essa tradição, alinhando o país aos EUA a
tal ponto que chegou a bater continência para Trump, no primeiro mandato.
Entretanto, por pressão dos interesses do agronegócio, teve que retroceder em
relação às hostilidades com a China. Não à toa, Trump utiliza todo o poder dos
EUA para anistiar Bolsonaro e livrá-lo da inelegibilidade e de possíveis
condenações penais por tentativa de golpe de Estado.
Quando se olha a balbúrdia no Congresso,
tomado de assalto pela bancada bolsonarista, há que se considerar que o
posicionamento desses parlamentares a favor de Trump e do tarifaço não é estranho
à nossa realidade: somos um país marcado por uma tradição ibérica de Estado
forte e sociedade hierárquica, tensionada pela modernidade igualitária e
democrática do Ocidente, da qual o modelo americano historicamente, até
recentemente, foi a principal referência. A política externa de Lula precisa
ser recalibrada levando em conta essa equação.
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