Folha de S. Paulo
Restrição à liberdade de expressão não é
ilegal, leniência à sua libertinagem é
A obra intelectual de Jair
Bolsonaro se encerra em mais ou menos cinco linhas:
"Devia ter
matado uns 30 mil. O erro foi torturar e não matar. Não estupro porque não
merece. Vou legalizar milícias. Não
sou coveiro. A minoria tem que se curvar à maioria. O
afrodescendente mais leve pesava sete arrobas. Rolou um clima. Dirás a
verdade. Fake
news faz parte da vida. Fora, Folha! Sou perseguido. Ficar em casa é para os
fracos. A Constituição sou
eu. Não vou mais obedecer. Amo a liberdade."
O pensamento oral de Bolsonaro gozou do mais
extravagante regime da liberdade de expressão que se tem notícia para um homem
público no país. Sempre foi duvidosa sua constitucionalidade.
Violava a lei, mas o STF (Supremo Tribunal Federal) se acostumou a liberá-lo com base na seguinte teoria: "apesar da grosseria e da vulgaridade, não parece ter extrapolado limites". Essa síntese da leniência jurídica foi de Alexandre de Moraes.
Bolsonaro-presidente liderou política pública
extraoficial de censura na sua forma mais insidiosa: por meio de intimidação e
ameaça, quando não do assédio policial e judicial, buscou promover auto-censura
de muitos jornalistas, professores, artistas e opositores. Não precisou criar
departamento de censura. Deixou que o medo terceirizasse o trabalho. Conquistou
o silêncio dos que não tinham estrutura para o risco.
Bolsonaro-réu da acusação do mais grave crime
do Código Penal brasileiro tem, no curso do processo, os mesmos direitos?
Bolsonaro-réu não é réu qualquer. Tanto por sua força social, quanto por
comportamento que aciona sua rede de desinformação, cria desafios especiais à
justiça.
Quando desobedece a ordens judiciais e usa as
redes para obstruir e coagir, regime de maior restrição, ainda que momentâneo,
pode ser necessário. Está em jogo a legitimidade da corte para decidir e se
fazer obedecer.
Bolsonaro tem a mais cara equipe de advogados
que o dinheiro pode pagar. Todas as ferramentas do direito de defesa dentro e
fora do processo estão à disposição. Sua dignidade tem sido tratada de maneira
oposta à maneira como sempre propôs tratar minorias. A como o próprio
Judiciário costuma tratar minorias.
O grito genérico pela liberdade de expressão,
por isso, erra a mira. Não estamos na Ágora grega, na praça pública ou num
livre mercado de ideias. John Stuart Mill deveria ser atualizado no século 21.
Pois não há verdade que emerja espontaneamente da circulação customizada de
ideias forjadas para manipular e radicalizar. Um espaço desenhado por algoritmo
secreto não promove "confronto de ideias". Gera dinheiro para o dono.
Não se pode subestimar a periculosidade do
movimento insurrecionista turbinado pela máquina. É urgente promover liberdade
de expressão em condições de igualdade. Desde que se entenda o ecossistema em
que a comunicação pública se desenvolve hoje.
Nada disso recomenda chancela automática a
cada medida cautelar do STF. Mas o confuso duelo retórico entre a defesa
abstrata da liberdade de expressão, de um lado, e a da democracia, de outro,
não vai ajudar.
Há razões para prisão preventiva de
Bolsonaro. Em vez do cárcere, Moraes optou por alternativa mais branda. Impôs,
contudo, vedações escorregadias a posts em rede social, sem conexão precisa com
o crime de obstrução da justiça.
O problema não é a liberdade de expressão de
Bolsonaro. É a falta de precisão do STF. STF precisa fazer mais e melhor, não
menos.
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