quarta-feira, 6 de agosto de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

É preciso respeitar as regras do jogo democrático

Correio Braziliense

Bolsonaro está na posição de quem não se importa com quais são as regras do jogo. Decisões do STF podem ser problematizadas, mas nunca descumpridas

O ex-presidente Jair Bolsonaro tinha medidas claras a cumprir quando o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do ministro Alexandre de Moraes, decidiu pelas já públicas medidas cautelares. Entre elas, estava a obrigação de não propagar discursos nas redes sociais. Ainda que não tenha falado nada demais em sua participação na rede social do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), um dos seus filhos, o ex-chefe do Planalto apostou alto ao desrespeitar o regramento definido pela Corte. 

A análise em Brasília é de que Bolsonaro agiu de maneira calculada. Apostou que Moraes não deixaria o descumprimento passar ileso, e o ministro acatou o que havia determinado. Preso em casa, o ex-presidente quer alimentar ainda mais a polarização e tende a usar a arma de sempre: a mobilização nas redes sociais, ainda que de maneira indireta, a partir, principalmente, de aliados. 

De acordo com monitoramento da consultoria Quaest, até 21h desta segunda-feira, cerca de 1,2 milhão de menções ao caso foram registradas nas principais plataformas digitais: 53% delas foram favoráveis à prisão, enquanto 47% manifestaram posicionamento contrário — em sua maioria, com críticas à medida do Supremo Tribunal Federal (STF) e acusações de abuso de poder. É nessa última percepção que o ex-presidente aposta para se colocar em posição de "perseguido político".

Para além do capital político, a aparição de Bolsonaro no vídeo de Flávio, durante o fim de semana, foi uma clara afronta às regras do jogo. Enquanto o julgamento pela tentativa de golpe de Estado não é finalizado, o ex-presidente deixa claro que não está disposto a cumprir medidas do STF, a Corte máxima do Judiciário brasileiro. 

Na história do país, muito se discutiu sobre a influência dos ministros do Supremo no lado político de Brasília. É evidente que suas decisões, por vezes, não reúnem apenas elementos jurídicos, mas também posições políticas demarcadas. No entanto, ainda que questionadas, essas determinações sempre foram respeitadas — algo inegociável na democracia. Decisões do STF podem ser problematizadas, mas nunca descumpridas.

Bolsonaro, por outro lado, está na posição de quem não se importa com quais são as regras do jogo. Com seu futuro político sob enorme pressão, está disposto a fazer o que for preciso para, no mínimo, se colocar como alvo de um suposto esquema político com objetivo de sufocar a direita brasileira. 

Parte dessa estratégia já foi colocada em vigor, durante a retomada das atividades do Congresso após recesso. A ala bolsonarista do Senado, por exemplo, ocupou a Mesa Diretora para pressionar pela tramitação de medidas problemáticas  do ponto de vista da independência dos Poderes, como o impeachment de ministros do STF e a anistia dos condenados pelo 8 de Janeiro.

Nesse cenário, cabe ao Supremo forçar que a partida seja jogada dentro das quatro linhas da lei — mesmo diante da tentativa dos Estados Unidos de exercer influência sobre a democracia brasileira, a partir do tarifaço e da Lei Magnitsky.

Decisão de Moraes tensiona o ambiente político

O Povo (CE)

Os acusados têm o direito de se defender e mesmo de criticar as decisões do STF. Porém, é inaceitável o desrespeito às ordens emanadas pela Suprema Corte, que podem ser contestadas por vias legais, porém nunca desobedecidas

Acusado de agir sob as ordens do Executivo, o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do ministro Alexandre de Moraes, provou a falsidade da alegação ao determinar a prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro. Além disso, o ministro avisou que não descarta ordenar a prisão em regime fechado do ex-presidente, caso ele volte a descumprir as medidas cautelares impostas pelo STF.

Para o governo brasileiro, no momento em que se abre uma fresta para a negociação das tarifas, o melhor seria que a crise com os Estados Unidos desescalasse, abrindo espaço para que as questões comerciais fossem discutidas separadamente dos assuntos políticos.

Agora, é certo que a prisão de Bolsonaro vai impactar negativamente as negociações sobre o tarifaço, tornando-se um dificultador de uma possível conversa direta entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o seu homólogo americano, Donald Trump.

No entanto, Moraes não considerou as injunções políticas do momento, mesmo porque, caso não ordenasse a prisão domiciliar de Bolsonaro — depois que ele desrespeitou conscientemente as medidas cautelares — seria a desmoralização do STF.

Os Estados Unidos reagiram nas redes sociais por meio do Escritório do Departamento de Estado para Assuntos do Hemisfério, classificando Moraes de "violador dos direitos humanos sancionado pelos EUA", acusando-o de tentar "silenciar a oposição". Uma nota de tal calibre — e mentirosa — não seria escrita sem ordem expressa de Trump.

Na frente interna, o que acontece é que o bolsonarismo está testando os limites da institucionalidade, desafiando abertamente o STF ao descumprir decisões da Corte. Aceitar passivamente tal situação seria um estímulo ao cometimento de novas irregularidades, que poderiam avançar para estágios ainda mais graves.

É inegável a existência de um movimento coordenado para confrontar as decisões do STF, do qual faz parte a tese de "perseguição política", que não se sustenta de pé, quando confrontada com as investigações da Polícia Federal e com a denúncia do Ministério Público Federal.

No Congresso Nacional, que voltou aos trabalhos depois do recesso, o ambiente está tensionado em seu limite máximo. A oposição acusa Moraes de praticar "vingança política" contra Bolsonaro, e fala em "ditadura declarada", exigindo o impeachment de Moraes. O deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) chamou o ministro de "psicopata" e seu irmão, o senador Flávio (PL-RJ) classificou como "covardia institucional" a decisão do STF.

Os acusados têm o direito de se defender, e mesmo de criticar as decisões do STF. Porém, é inaceitável o desrespeito às ordens emanadas pela Suprema Corte, que podem ser contestadas por vias legais, porém nunca desobedecidas, como recorrentemente fazem os bolsonaristas.

Bolsonaro tem direito à livre expressão

Folha de S. Paulo

  • Moraes erra ao determinar prisão domiciliar de ex-presidente, e corte deveria reinstituir a garantia
  • Bolsonaro teria se tornado ditador não fossem as instituições, mas democratas não viram tiranos para enfrentar a tirania

Na eleição de 2018 e enquanto esteve na Presidência, Jair Bolsonaro (PLatacou a imprensa profissional, e esta Folha em particular, covarde, insistente e brutalmente. Incitou a massa de seus apoiadores extremistas contra jornalistas e veículos, liderou campanhas de boicote e perseguiu a asfixia financeira das empresas.

Imprecou dia sim, outro também, contra a independência dos Poderes democraticamente constituídos, alvejando sobretudo juízes do Supremo Tribunal Federal. Fez campanha contra o sistema de votação e arregimentou assessores e ministros do governo para tentar sabotá-lo.

Inconformado com a derrota nas urnas, insuflou hordas de fanáticos que se aglomeravam defronte a quartéis e bloqueavam rodovias pelo país. Tramou a subversão do regime democrático com oficiais das Forças Armadas e, não obtendo apoio, fugiu do Brasil para, quem sabe, esperar um vento favorável do destino.

Assistiu da Flórida às depredações de 8 de janeiro de 2023, postou mensagem encorajadora aos vândalos e logo depois a apagou, temendo ser enquadrado pela lei. Dois anos e meio depois, denunciado e processado por tentativa de golpe, associou-se ao presidente dos Estados Unidos numa chantagem abjeta contra a economia e a soberania do Brasil.

Jair Bolsonaro é um inimigo da Constituição de 1988 e das liberdades civis. Se não tivesse sido parado pela intransigência democrática da sociedade e das instituições brasileiras, teria se convertido em ditador e hoje estaria censurando, reprimindo e violentando cidadãos e organizações.

Com a mesma firmeza que impôs o império da lei a esse aventureiro do autoritarismo, o Brasil deve reconhecer que Jair Bolsonaro detém ampla liberdade de se defender na Justiça e de se expressar onde quer que seja, inclusive nas redes sociais. Democratas não se transformam em tiranos para combater a tirania.

A pretexto de enfrentar a ameaça autoritária, o ministro Alexandre de Moraes, apoiado pela maioria dos colegas, desenvolveu teoria e prática estranhas à Carta. As ordens de censura, muitas vezes exaradas em despachos secretos que não permitem defesa, tornaram-se lugar-comum.

Moraes errou ao pretender silenciar Bolsonaro numa ordenação kafkiana, impossível de cumprir. Moraes erra ao mandar prender o ex-presidente por ter se comunicado com apoiadores em atos organizados pela direita.

A liberdade de expressão é direito que não abandona nem sequer quem cumpre pena —lição que o ministro Luiz Fux, que no passado censurou a Folha numa tentativa de entrevistar o então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no cárcere, parece agora ter aprendido com Bolsonaro.

A maioria dos colegas de Alexandre de Moraes precisa reinstituir esse princípio basilar da ordem democrática. O espírito de corpo ou de defesa contra assédio estrangeiro não justifica relativizar garantias constitucionais.

SP atrasa desativação de manicômios

Folha de S. Paulo

  • Prazo esgotou-se em maio de 2024, mas, enquanto o número de internos cai no Brasil, o do estado aumenta
  • Não se trata de mera questão normativa. O Ministério dos Direitos Humanos atestou situação degradante em vários desses locais pelo país

Em 2001, a Lei Antimanicomial proibiu a internação de pessoas com transtornos mentais por tempo indeterminado no Brasil. Mesmo assim, só em abril de 2023 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) resolveu colocar o diploma em prática e determinou a desativação dos hospitais de custódia.

Tais locais, conhecidos como manicômios judiciários, abrigam indivíduos em medida de segurança —cometeram crimes, mas foram considerados inimputáveis pela Justiça por serem diagnosticados com algum tipo de transtorno psiquiátrico.

O prazo para cumprir a medida findou em maio de 2024. Mas, segundo o CNJ, apenas cinco unidades da federação fecharam essas instituições (Ceará, Goiás, Mato Grosso, Piauí e Roraima), enquanto outras 14 interromperam a entrada de novos internos.

São Paulo, contudo, não só ainda mantém seus três hospitais de custódia ativos como o número de internos aumentou.

Dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais mostram que o contingente passou de 761 para 993, entre o segundo semestre de 2022, antes da resolução do CNJ, e o segundo semestre de 2024.

Atualmente, são 1.026, de acordo com a Secretaria da Administração Penitenciária paulista. Nos outros estados do país, o montante caiu de 1.063 para 783, durante o mesmo período.

No final do ano passado, 56% do contingente estava em São Paulo, o que de fato impõe grandes desafios à transição. Mas isso não pode ser usado como subterfúgio pelo estado mais poderoso do Brasil para infringir a lei e a decisão do CNJ.

Não se trata de mera questão normativa. Relatórios produzidos pelo Ministério dos Direitos Humanos, após inspeções realizadas de 2022 a 2024, atestaram condições degradantes em vários desses locais pelo país.

Visitas de especialistas do Conselho Federal de Psicologia também constataram cenário similar, que inclui falta de higiene, abuso de medicamentos e até situações análogas à tortura.

Os pacientes liberados receberão atendimento pelos Centros de Apoio Psicossocial (Caps), e aqueles que não possuem família devem ser direcionados para residências terapêuticas.

O governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) tem o dever de agilizar de forma responsável a desativação dos hospitais de custódia, com formulação de planos individualizados para tratamento e alocação de recursos em infraestrutura na rede de saúde.

Manicômios judiciários não têm lugar numa sociedade que preze pelos direitos humanos.

COP30 deveria transferir para o Rio parte dos eventos

O Globo

Mudança não seria indolor, mas traria menos riscos que o caos prenunciado em Belém

Fica a cada dia mais evidente que Belém não terá condição de hospedar de modo satisfatório a Conferência do Clima (COP30), agendada para 10 a 21 de novembro. A prova mais eloquente vem do mercado: os preços cobrados para hospedagem estão fora da realidade, como demonstrou reportagem do GLOBO. O custo proibitivo reflete a escassez de acomodação para todos os participantes e ameaça a presença de delegações estrangeiras. Está em xeque o êxito da conferência.

A escolha de uma cidade da Amazônia para realizar a COP30 foi importante por traduzir o protagonismo do Brasil na questão ambiental. Mas, ao insistir em Belém como sede exclusiva, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não levou em conta as deficiências de infraestrutura da cidade. Apesar do prazo exíguo, ainda há tempo de evitar o pior. Mas é preciso agilidade. O governo federal deveria transferir para o Rio de Janeiro a maior parcela dos eventos possível, mantendo em Belém os mais representativos, que preservem o simbolismo da sede amazônica.

Evidentemente, a esta altura, não será uma saída indolor. Mas, quanto mais tempo demorar a decisão, mais cara ela ficará. A transferência envolveria uma operação de guerra para preparar a base carioca, mas seria menos arriscada do que o cenário caótico que se prenuncia caso Belém seja a única sede.

Como mostrou reportagem do GLOBO, a diária em hotéis medianos na capital paraense supera a dos estabelecimentos mais luxuosos de São Paulo e Rio de Janeiro. Para reservar um quarto simples em Belém, o hóspede terá de desembolsar entre R$ 28,7 mil e R$ 85 mil. Se ficasse no Copacabana Palace, que abrigou celebridades como Madonna, Mick Jagger e Paul McCartney, pagaria R$ 47 mil. A diária num três estrelas em Belém é superior à dos paulistanos Rosewood (R$ 64 mil), Fasano (R$ 50 mil) e Emiliano (R$ 46 mil).

A crise na hospedagem era previsível, e o governo sabia disso quando teimosamente insistiu em manter a conferência em Belém. Com apenas 18 mil leitos disponíveis, a cidade se viu em dificuldades para receber um público estimado em 50 mil participantes. É verdade que nenhuma cidade está preparada. O Rio teve de construir milhares de quartos para a Olimpíada de 2016. No caso de Belém, o tempo era curto (a sede foi confirmada em 2023), e não faria sentido construir hotéis que depois ficariam ociosos. Com poucas vagas e a demanda explosiva, os preços dispararam. A menos de cem dias da conferência, a principal discussão da COP30 não trata de mudanças climáticas, mas do preço da hospedagem.

Quartos não se multiplicarão num passe de mágica, nem os preços baixarão só porque o governo quer. As soluções cogitadas, como contratar navios de cruzeiro, não resolvem o problema, pois envolvem alto custo de transporte. Apesar dos esforços do governo paraense e de a presidência da COP30 assegurar não haver plano B, a crise está instalada. Delegações estrangeiras já fizeram uma reunião de emergência exigindo mudança da sede, e há outra agendada para a próxima segunda-feira. Para que o Brasil não passe vergonha diante de todo o planeta, é preciso agir logo. O Rio, maior destino turístico do país, tem vasta experiência em megaeventos e dispõe de excelente infraestrutura de hotéis, transportes e serviços. A ninguém interessa uma COP30 esvaziada por problemas logísticos. Passou da hora de transferir os eventos possíveis para o Rio.

Leniência do poder público com lixões é uma ameaça à população

O Globo

Eles já deveriam ter sido extintos, mas modelo de IA treinado pelo GLOBO detectou incêndios em mais de 700

Não há maior evidência do fracasso da Política Nacional de Resíduos Sólidos, sancionada em 2010 no segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do que um fato singelo constatado em reportagem do GLOBO: o local previsto para a realização da conferência global do clima, a COP30, fica a 95 quilômetros de um lixão que queima a céu aberto, no município paraense de Curuçá. O primeiro prazo legal para o fim dos lixões no Brasil venceu em 2014, mas foi prorrogado sucessivamente até o ano passado. E os lixões continuam por aí, como resultado da omissão das autoridades, da falta de fiscalização e de punição.

Embora não haja dados oficiais, uma pesquisa do IBGE revelou que 1.700 municípios, ou mais de 30% do total, admitiam ainda ter lixões a céu aberto em 2023. No mesmo ano, o Ministério do Meio Ambiente informou haver 463 em atividade. A Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente afirma que pode haver 3 mil áreas de descarte clandestino de lixo no país.

Essas montanhas de lixo costumam queimar por combustão espontânea ou por incêndio intencional. A reportagem do GLOBO treinou um modelo de inteligência artificial (IA) para, por meio de imagens de satélite, identificar os lixões, excluindo os aterros sanitários legais (equipados com dispositivos para coletar chorume). O modelo constatou que, nos últimos dez anos, em todos os estados, houve 2.974 alertas de incêndio em 740 lixões — um foco a cada dois dias.

O fogo libera para a atmosfera algo como 6 milhões de toneladas de gases de efeito estufa por ano. O impacto dos lixões no meio ambiente equivale às emissões de uma cidade do porte de Campinas (SP), com 1,1 milhão de habitantes, ou a uma frota de 3 milhões de carros a gasolina. “O lixo vai se decompondo, e a matéria orgânica produz metano. É um supergás de efeito estufa, 30 vezes mais poderoso para absorver calor que o gás carbônico. A proibição de queima de resíduos deveria ser muito mais efetiva”, afirma o cientista do clima Carlos Nobre, da Universidade de São Paulo (USP).

Os prejuízos para a saúde pública também são grandes. Não é apenas metano que os incêndios propagam. Por queimarem toda sorte de entulho, plástico, lixo eletrônico e orgânico, também liberam substâncias cancerígenas, como dioxinas, furanos, enxofre e mercúrio. Doenças como febre tifoide, leptospirose e até peste bubônica podem ser causadas pelo contato direto ou indireto com o lixo, afirma estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Outro efeito grave dos lixões perto de aeroportos é a proliferação de aves como urubus, que se chocam com as aeronaves. Desde 2021, tem sido registrada no Brasil uma média anual de 2.100 desses choques.

A leniência do poder público com os lixões a céu aberto é inaceitável e constitui grave ameaça à população. A lei manda que eles sejam extintos. Já deveriam ter sido.

Trump ameaça as estatísticas e a independência do Fed

Valor Econômico

Depois de destruir grande parte da ordem comercial global, Trump inocula desconfiança e instabilidade em dois pilares da prosperidade e da confiança dos mercados financeiros americanos

O presidente Donald Trump não passa um dia sem tentar estender seus domínios sobre as instituições. Suas duas ofensivas mais recentes preocupam os investidores, por boas razões: podem quebrar a confiança em duas bases do maior mercado financeiro do mundo, as estatísticas e a independência do Federal Reserve (Fed, o banco central americano). Em mais um de seus rompantes, Trump não gostou dos números contidos na divulgação da criação de vagas no mercado de trabalho em julho, que minguaram para 73 mil postos e foram acompanhados por revisão dos resultados de maio e junho, que encolheram em 285 mil empregos. O presidente demitiu por isso a responsável pelo Departamento de Estatísticas do Trabalho (BLS), Erika McEntarfer. Depois de assediar o presidente do Fed, Jerome Powell, para que se demita, Trump ganhou a chance de indicar um novo membro do Fed que poderá fazer sombra a Powell, vir a substituí-lo e, talvez, por fim, atrelá-lo ao Executivo.

Trump detestou as estatísticas do trabalho, e usou as revisões como pretexto para difamar McEntarfer, indicada pelo presidente anterior, Joe Biden, acusando-a de ter manipulado os números para prejudicar a administração republicana e enaltecer a democrata. Os números não mostraram, como postou em sua rede Truth Social, que “a economia está bombando com Trump”. Segundo o presidente, McEntarfer teria também aumentado o número de empregos antes das eleições para “facilitar a vitória de Kamala Harris”. Como também é habitual, nada disso é verdadeiro.

Trump afirmou que estatísticas como essa são tão importantes que “não podem ser manipuladas para fins políticos”, expressando com clareza exatamente o que estava fazendo. É um ato visto antes somente em regimes populistas, como o dos Kirchner na Argentina, que desvirtuaram estatísticas de inflação do Indec, ou ditaduras, como a russa.

Bancos e investidores sentiram o golpe da demissão como uma ameaça potencial a seus negócios. A demissão de McEntarfer “traz riscos para a condução da política monetária, para a estabilidade financeira e para a perspectiva econômica”, alertou o JP Morgan, maior instituição financeira americana. “Confiança nas instituições é um motivo pelos quais os EUA são o destino de capital estrangeiro, e uma delas são as agências de estatísticas oficiais”, disse ao Financial Times o economista-chefe do banco, Michel Feroli.

O BLS produz não só as estatísticas de trabalho, como as da inflação que constituem o Índice de Preços ao Consumidor (CPI, em inglês), indexador de títulos do Tesouro protegidos da inflação (TIPS), comercializados aos bilhões de dólares diariamente. A desconfiança imediatamente disseminada após a intervenção de Trump é que a escolha de um servidor fiel colocará sob suspeita os dados fornecidos ao público, e um dos motivos é que isso é crível porque o presidente não tem escrúpulos para jogadas sujas que lhe garantam mais poder ou lhe deem vantagens políticas.

Dados manipulados são um enorme problema não só para Wall Street, mas para o Fed, cujo mandato dual pressupõe a garantia do maior nível de emprego possível. Powell, fustigado sem parar por Trump para baixar os juros, os manteve na última reunião, dois dias antes da intervenção no BLS. Trump ignorou os fatos. Um dos motivos do enfraquecimento do mercado de trabalho foram as demissões em massa de funcionários públicos ordenadas pelo presidente. Além disso, essa fraqueza aumentou as chances de cortes dos juros no próximo encontro do banco. E, por último, Trump talvez não entenda algo quase tautológico, explicado por Powell: como o estoque de emprego é finito e o país está em pleno emprego, o número de vagas ofertadas tende fatalmente a diminuir.

Ameaçar a confiabilidade das estatísticas não foi uma ação solitária de Trump, mas veio na sequência da série de ameaças contra Powell, inclusive insinuando suspeitas de corrupção, para que ele saia do cargo. O presidente, no entanto, teve a sorte da renúncia de Adriana Kugler, membro do Fed indicada por Biden, cujo mandato expira em janeiro. Ele disse que indicaria nesta semana um substituto, que pode também vir a ser o sucessor de Powell, como admitiu. Em entrevista à CNBC, citou como bons nomes Kevin Hassett, diretor do Conselho Nacional Econômico, da sua equipe, ou Kevin Warsh, ex-membro do Fed.

No mercado de apostas, Warsh desponta como o favorito, com 29% de chances. Ele não esconde sua oposição a Powell, já defendeu sua saída e disse que a hesitação do Fed em cortar juros “é um claro sinal de fraqueza”. Apoia também uma aliança estratégica com o Tesouro, como pregam os gurus de Elon Musk, desaconselhada por economistas e investidores, por significar perda de independência e caminho aberto para a monetização dos enormes déficits americanos.

Depois de destruir grande parte da ordem comercial global, Trump inocula desconfiança e instabilidade em dois pilares da prosperidade e da confiança dos mercados financeiros americanos. Em ambos os casos, poderá colher, além de turbulências, a insuportável aliança de interesses contrariados no exterior e em seu próprio país.

É preciso interromper a marcha da insensatez

O Estado de S. Paulo

Nem o golpismo bolsonarista nem abusos judiciais do STF podem ser normalizados. O Brasil precisa da serenidade de suas autoridades nesta hora grave para escapar do ciclo de radicalização

A prisão domiciliar de Jair Bolsonaro, ordenada em caráter preventivo pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, é o ponto mais dramático a que chegamos até aqui no que se pode classificar como uma espiral de imprudências que colocou o Brasil numa rota extremamente perigosa.

A esta altura, só os cidadãos inebriados pela devoção inconteste ao “mito” são incapazes de alcançar a gravidade das acusações e dos elementos de culpabilidade que pesam sobre Bolsonaro no julgamento em que o ex-presidente é réu no STF. Mas, mesmo entre os que compreendem exatamente o que Bolsonaro tentou fazer para se aferrar ao poder em 2022, decerto não são poucos os que enxergam em algumas decisões do Supremo, em particular de Moraes, mais do que meros erros judiciais, que de resto podem ser corrigidos. Estamos falando de abusos de poder que, ainda que tenham sido cometidos em nome da “salvação da democracia” ou coisa que o valha, não deixam de ser abusos intoleráveis à luz do Estado Democrático de Direito consagrado desde o preâmbulo da Constituição.

Está em movimento, portanto, um círculo vicioso que ora paralisa o País no sentido de impedir a discussão e a construção de consensos mínimos em torno de temas diversos ao destino jurídico de um desqualificado como Bolsonaro, essas, sim, questões relevantíssimas para os interesses gerais da Nação. A cada abuso dos radicais bolsonaristas – como, por exemplo, o conluio com o governo dos EUA a fim de subjugar o Judiciário brasileiro e o pedido de anistia para os golpistas, além do impeachment de ministros do STF – parece corresponder uma reação de Moraes no sentido diametralmente oposto, mas igualmente figadal. Ninguém parece disposto a serenar os ânimos e pensar no que é melhor para o País.

A articulação entre os interesses bolsonaristas e os interesses do presidente americano Donald Trump para forçar uma anistia a Bolsonaro é, por si só, aviltante. Trata-se de uma chantagem disfarçada sob o manto de uma suposta “pacificação nacional”, que nada mais é do que um pedido de impunidade generalizada. Bolsonaro não é perseguido político. É réu por crimes graves, entre eles uma tentativa de golpe de Estado. Sua inelegibilidade, decretada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), é resultado de um devido processo legal. Não há que se falar em revanchismo quando há, como há, provas e indícios robustos de tentativa de violação da ordem constitucional democrática.

Mas a resposta a esse golpismo continuado deve ser mais prudência, e não menos, o que não se confunde com falta de firmeza. A resposta institucional a essa marcha da insensatez deve ser, sim, firme – mas também moderada, transparente e muito bem fundamentada. Moderação não é capitulação à chantagem e ao golpismo. Defender a legalidade e a temperança das decisões do STF não equivale a ceder aos que desejam sabotar a democracia em nome da liberdade de um golpista inveterado como Bolsonaro. Do mesmo modo, resguardar a autoridade do STF não implica endossar sem reservas decisões de Moraes que contrariam a jurisprudência da própria Corte e, pior, abastardam direitos e garantias individuais assegurados pela mesma Constituição que o STF tem o dever de defender.

Essa escalada da radicalização não é destino. Não se pode legitimar o comportamento de liberticidas que não dão a mínima para o que vai acontecer com o País amanhã. Assim como não se pode admitir uma espécie de vale-tudo judicial em nome do combate aos inimigos da democracia. É mais do que hora de o STF, a cúpula do Congresso, os líderes dos partidos ainda comprometidos com a democracia liberal e o presidente Lula da Silva jogarem água nessa fogueira, e não mais gasolina. Às mais altas autoridades da República cabe agir com responsabilidade institucional nesta hora grave.

O País clama por serenidade. É tempo de recusar maniqueísmos e restaurar canais de diálogo, o que nem remotamente significa fazer concessões a liberticidas. Significa lembrar que, numa democracia liberal digna do nome, o respeito às leis e à Constituição é a única diferença entre o Estado de Direito e o arbítrio – sobretudo quando este aparece mascarado como virtude.

A república bananeira de Trump

O Estado de S. Paulo

Ao demitir autoridade estatística por divulgar dados desabonadores, Trump mina instituições e aproxima os EUA das práticas de regimes autocráticos: quebrar o termômetro e matar o mensageiro

“Quando os fatos mudam, eu mudo de opinião.” A frase atribuída a John Maynard Keynes resume o que se espera de estadistas maduros: coragem para adaptar decisões à realidade, e não falsear a realidade ao sabor das decisões. Donald Trump, ao contrário, tem se especializado em “mudar” os fatos – e punir quem os revela. A mais recente vítima do presidente americano é Erika McEntarfer, comissária do Departamento de Estatísticas do Trabalho (BLS, na sigla em inglês), demitida após a divulgação de números de emprego desfavoráveis ao governo. A justificativa? Os dados estariam manipulados para prejudicar os republicanos. Provas? Nenhuma.

A metáfora da “república das bananas”, cunhada para descrever Estados nanicos, instáveis, personalistas e propensos à corrupção e à demagogia, hoje se aplica com inquietante pertinência aos Estados Unidos governados por um presidente que tenta “matar o mensageiro” sempre que a mensagem contraria seu discurso. Desde que reassumiu o poder, Trump intensificou pressões sobre o Fed, o banco central americano, alimentou teorias conspiratórias contra estatísticas oficiais, desmontou órgãos de controle e transformou perfis oficiais nas redes em palanques. Tudo isso num ambiente econômico marcado por tarifas erráticas, inflação instável e crescimento anêmico. Um governante sensato reconheceria os alertas. Trump opta por quebrar a balança – ou virar o tabuleiro, como uma criança contrariada.

A credibilidade das estatísticas oficiais é um pilar da confiança dos mercados e da formulação de políticas públicas racionais. Sem dados confiáveis, empresas congelam investimentos, o banco central hesita, investidores fogem, servidores trabalham de olhos vendados. Um país que mente sobre si mesmo perde sua bússola – e o respeito dos outros.

Não é um risco teórico. A Argentina, sob os Kirchners, fraudou sistematicamente os índices de inflação, implodindo a credibilidade internacional e incitando ações legais de credores. A Venezuela chavista destruiu sua estatística oficial e mergulhou num colapso econômico. A China enfrenta ceticismo crônico. A Grécia pagou caro por ocultar déficits, com uma década de crise e tutelas externas. A História mostra que falsear números não resolve problemas. Só os agrava.

O Brasil conhece bem essas manobras diversionistas. Nos governos petistas, houve fraude fiscal nas chamadas “pedaladas”, manipulação da meta de superávit e tentativas de escamotear o déficit. No governo Bolsonaro, o negacionismo se traduziu na tentativa de ocultar dados da pandemia e desacreditar e constranger órgãos técnicos, como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Em todos os casos, o resultado foi o mesmo: erosão da confiança, judicialização, fuga de capitais.

O governo Biden também tentou minimizar a inflação recorde de 2022, subestimou os efeitos de pacotes de gastos e lançou mão de eufemismos contábeis. Mas no caso de Trump, a hostilidade à verdade, mais do que sinal de desespero, é um método. O ataque ao BLS ecoa seus assaltos ao sistema eleitoral, à imprensa livre, à Justiça e ao Capitólio. Trata-se de um padrão autoritário: rejeitar qualquer realidade que não sirva à sua causa e destruir instituições que resistam.

Nos próximos meses, Trump poderá nomear um novo presidente do Fed mais “leal” à sua agenda. Se também subjugar a máquina estatística federal, as fronteiras entre propaganda e verdade estarão irremediavelmente borradas. O país que já foi o modelo do capitalismo democrático corre o risco de se parecer mais com os regimes que jura combater. É fácil destruir a confiança. É muito difícil restaurá-la. Gestores públicos, empresários e cidadãos precisam confiar que a régua não será alterada conforme o humor do presidente.

Trump gosta de repetir que “a América voltou a ser grande”. Mas grandeza não se mede em bravatas. Mede-se em instituições sólidas e respeito à verdade. Os Estados Unidos de Trump, hoje, se parecem mais com uma caricatura tropical: um governante que não admite más notícias, demite técnicos, agride árbitros e transforma o governo num reality show pessoal. Esse é o retrato de uma república bananeira. E ela fala inglês.

Ataque certeiro na Cracolândia

O Estado de S. Paulo

Ação mostra que é possível enfrentar problemas graves com inteligência e coordenação

Os cidadãos que caminham pela antiga Cracolândia, no centro de São Paulo, região que um dia foi ocupada por usuários de drogas que vagavam sem rumo e entorpecidos pelo crack, encontram agora as vias livres do consumo a céu aberto da droga. Desde março deste ano, quando o chamado fluxo de usuários do crack desapareceu da Rua dos Protestantes, foram muitas as hipóteses aventadas para a mudança de um cenário que estava degradado havia mais de 30 anos. Hoje, sabe-se que o estrangulamento de um ecossistema do crime arquitetado pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) de dentro da Favela do Moinho levou a esse esvaziamento.

Foi isso o que mostrou uma recente reportagem publicada pelo Estadão. A favela encravada entre duas linhas de trens sob responsabilidade do Estado e erguida em um terreno da União era uma espécie de quartel-general do PCC no centro. Dali, criminosos usavam a intricada estrutura local para armazenar e distribuir drogas na Cracolândia, captavam sinais de radiotransmissores da Polícia Militar (PM) e ainda promoviam julgamentos num “tribunal do crime”, nos quais costumam punir comparsas e inimigos, além de aterrorizar a comunidade.

Coube ao Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), explorar a inteligência no combate ao PCC na região central da capital paulista. E, com a queda do QG da facção na Favela do Moinho, caiu também a oferta de drogas. Como disse o promotor de Justiça Lincoln Gakyia, “uma coisa”, o consumo do crack na Cracolândia, “não poderia sobreviver sem a outra”, o tráfico oriundo da favela.

Ao mesmo tempo em que o PCC era asfixiado pelas operações do Gaeco, a Polícia Militar assumiu seu papel de atuação ostensiva. Houve queixas contra a presença dos PMs no Moinho, mas sempre é bom lembrar que, como mostrou o Estadão, os moradores da favela viviam sob o medo e ainda eram alvo de achaques de integrantes do PCC, os verdadeiros inimigos. Presentes na entrada da favela, policiais dificultaram a vida dos bandidos, ao passo que o governo do Estado, a Prefeitura e o governo federal, após divergências que foram acertadamente sanadas, chegaram a uma solução para quase 900 famílias, com a sua remoção para unidades de programas habitacionais.

Como se vê, o uso da inteligência nas investigações e operações deflagradas na Cracolândia, a presença ostensiva necessária e adequada da PM na Favela do Moinho e a promoção de políticas públicas de habitação aos moradores da área resultaram no desaparecimento do infame fluxo de usuários do crack. Decerto, houve dispersão pelo centro, o que levou a críticas da população, mas isso não anula os feitos desse trabalho do poder público sustentado nesses três pilares. Para chegar ao resultado almejado por todos os paulistanos, que é o fim das Cracolândias pela cidade, as autoridades precisam socorrer, com ações de saúde, os usuários de drogas. Há muitos motivos para comemoração, mas há ainda um delicado e humano trabalho a ser feito.

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