Folha de S. Paulo
Protestos reafirmam a
identidade tribal bolsonarista e buscam legitimidade simbólica
Ao que tudo indica, o
bolsonarismo voltou
às ruas. Já não se veem as multidões impressionantes de 2016 a 2020,
tampouco as mobilizações alcançam
a escala nacional dos tempos gloriosos do movimento —mas cumprem bem a função
que o consórcio Bolsonaros-Malafaia lhes designou.
Em uma época em que a
presença digital e a política institucional são, de longe, mais efetivas do que
30 ou 40 mil pessoas aglomeradas ao redor de um carro de som, "as
ruas" passaram a ter valor sobretudo simbólico e psicológico.
A nova extrema direita aprendeu com a esquerda tradicional, igualmente populista, que "ocupar as ruas" com multidões mobilizadas confere a qualquer causa um selo de legitimidade que a política institucional raramente alcança. Nesse sentido, 50 mil pessoas reunidas num domingo teriam mais valor simbólico como expressão da soberania popular do que os 513 deputados eleitos e os 120 milhões de votos depositados nas urnas.
Reunir uma multidão é enviar
uma mensagem: se querem saber o que o povo quer, eis aqui o povo manifestando
sua vontade. Com isso, o populismo de direita derrota a esquerda no seu próprio
jogo, já que esta, que antes dominava nitidamente as praças, já não consegue,
como antes, levar multidões significativas às ruas —salvo em ocasiões
excepcionais. E é aí que entra o segundo ponto de interesse da extrema direita
nas manifestações de rua: se é legitimidade o que está em jogo nesse
exibicionismo, tamanho é documento, sim —e "as nossas manifestações são
maiores do que as suas".
O que explica, naturalmente,
o despeito que os exibicionistas de multidões costumam nutrir pelo "povo
da USP" —o Monitor do Debate Político, liderado por Pablo Ortellado—, que
introduziu critérios rigorosos e transparentes para estimar o número real de
participantes em atos públicos, retirando do jogo de interesses a prerrogativa
de inflar livremente o tamanho das massas mobilizadas.
Durante anos, foi fácil
esticar os números até a escala assombrosa das centenas de milhares —ou mesmo
do milhão—, até que os cientistas "encolhedores de multidões"
estragaram a brincadeira e lembraram que política não se faz (só) com
hipérbole.
Mas a questão não é apenas
por que o bolsonarismo aprecia exibir grandes multidões, e sim por que elas
voltaram a se reunir com mais frequência. A resposta está em outra função
desses protestos: seu papel na reafirmação identitária e na compactação ideológica
do grupo. Ao ocupar as ruas, o movimento mede seu próprio tamanho, reativa
laços de pertencimento e renova a convicção de que ainda tem força.
Pessoas se dispõem a sair de
casa e protestar quando se identificam fortemente com os outros manifestantes,
acreditam que um valor essencial ou a sobrevivência do grupo está em risco ou
sentem urgência diante de uma ameaça. Todas essas condições estão presentes
para os bolsonaristas, desde que as narrativas sobre "a ditadura de Alexandre
de Moraes" e a perseguição injusta a Bolsonaro foram plenamente
incorporadas pelo movimento. As manifestações são, então, atos de autodefesa
tribal, de sobrevivência da própria identidade.
É o "ninguém larga a
mão de ninguém" de um grupo que faz da vitimização a principal estratégia
de coesão e mobilização. Poucas coisas são tão eficazes para reforçar uma
identidade e produzir o senso de "ou nos juntamos ou estamos perdidos"
do que a convicção de estar cercado, ameaçado e sob ataque.
Nisso, o consórcio
Bolsonaros-Malafaia é
especialmente eficaz. Sabe que o bolsonarismo se move por medo e indignação,
sentimentos que precisam de um bicho-papão para serem suscitados. Se o
antipetismo perdeu apelo político, ou ficou menor que o antibolsonarismo — como
comprova o fato de Lula ter sido reeleito em 2022 —, o novo monstro que
frequenta os pesadelos é Alexandre de Moraes.
Se a Lula se odiava por
corrupto, a Alexandre se odeia por ditador. Sem sombra de dúvida, o antialexandrismo é
o antipetismo desta
estação, assim como o sentimento anti-STF é a nova
versão da antipolítica que protagonizou a eleição de 2018. Assistimos, em tempo
real, ao bolsonarismo reciclando um mobilizador de fúria política e fabricando
coletivamente a cola que une sua militância — ingredientes essenciais para pôr,
mais uma vez, multidões indignadas nas ruas.
Eis por que a massa
bolsonarista se agita, nas ruas e nas redes, para defender o que as narrativas
do movimento garantem estar sob ataque: sua própria existência enquanto
movimento político e moral. A ameaça, como convém, tem nome e rosto: o
juiz-ditador, o monstro desta estação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário