- O Globo
Na categoria dos trabalhadores domésticos, não há vestígio de abundância de viagens internacionais
Tão íntimo de planilhas e apresentações que justificam cortes e mais cortes nos gastos, projetos e mais projetos de reforma do Estado, o ministro Paulo Guedes perdeu-se na retórica na última peça de sua coleção de declarações impróprias. Não há evidência estatística que relacione trabalhadores domésticos à “festa danada” de viagens de brasileiros à Disneylândia, como declarou. Foi puro suco de preconceito. Dá para chamar de aporofobia, aversão aos pobres, misturada à misoginia, com pitadas de racismo estrutural.
No último trimestre do ano passado, segundo o IBGE, trabalhadores domésticos ganhavam em média R$ 897 por mês, quantia inferior ao salário mínimo de 2019 (R$ 998) e claramente incompatível com as visitas aos EUA que o czar da Economia associou ao dólar barato anterior à sua gestão. No gênero, Guedes não errou. A Pnad Contínua consagra o masculino, mas são mulheres nove entre dez (92,7%) pessoas ocupadas nos lares brasileiros. Duas em cada três (65,9%) têm a pele preta ou parda.
Na numerosa categoria dos trabalhadores domésticos, herança da colonização forjada na escravidão, não há vestígio de abundância de viagens internacionais. Nos anos recentes, o que sobra é precarização. Desde 2013, o país viu o total de ocupados saltar de 5,941 milhões para 6,356 milhões: em sete anos, saiu do ponto mínimo para o pico da série histórica. A informalidade deu tom: desde 2014, o número de trabalhadores sem carteira assinada passou de 4,038 milhões para 4,585 milhões. Mesmo com a PEC das Domésticas (que estendeu ao grupo os benefícios trabalhistas da septuagenária CLT), entre 2015 e 2019, o número de empregados formais caiu de 2,081 milhões para 1,770 milhão.
Não foi a primeira vez que o ministro da Economia externou visão elitista em relação à massa de trabalhadores brasileiros. Mês passado, no Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça), ele atribuiu à pobreza a degradação ambiental: “As pessoas destroem o meio ambiente porque precisam comer”. Antes disso, em novembro passado, cobrara capacidade de poupança da base da pirâmide: “Um menino, desde cedo, sabe que é um ser de responsabilidade quando tem de poupar. Os ricos capitalizam seus recursos. Os pobres consomem tudo”, declarou à “Folha de S.Paulo”. No país, a renda média da metade mais pobre é de R$ 820 por mês.
Quando o Brasil cobra do ministro explicações sobre a taxa de câmbio, quer saber do impacto no custo de mercadorias, partes e peças industriais, máquinas e equipamentos adquiridos no exterior. Quer saber o que o governo pensa e fará para conter a volatilidade, estabilizar as cotações e devolver previsibilidade aos agentes econômicos. No ano passado, quando a moeda americana voltou a subir forte, o Banco Central vendeu US$ 36,9 bilhões em reservas internacionais brasileiras. Foi mais que o dobro dos US$ 17,5 bilhões que os brasileiros gastaram em viagens internacionais.
Se empatia tivesse pelas trabalhadoras domésticas, em vez de ofendê-las pelas viagens que não fizeram, o ministro Guedes agiria contra a alta de 7,84% no preço da alimentação nos domicílios em 2019, quase o dobro da inflação oficial, de 4,31%. O que certamente preocupou as empregadas — e boa parte das famílias brasileiras — foram os aumentos de 55,99% no quilo do feijão-carioca, de 32,4% na carne, de 12% no frango, de 14,73% na dúzia de ovos.
Guedes poderia fazê-las entender que o dólar mais caro tem a ver com a alta nos preços de produtos agrícolas e da gasolina. Mas pode ser bom para exportadores aumentarem vendas e importadores optarem por fabricar no país itens que trazem de fora. Gerariam, assim, trabalho e renda para jovens moças e rapazes que integram a primeira geração de milhares de famílias chefiadas por domésticas a chegar à universidade, mas amargam desemprego equivalente ao dobro da média nacional, de 11% no fim de 2019. Papel de ministro da Economia pautado pelo bem-estar social é esse.
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