Incontinência verbal – Editorial | Folha de S. Paulo
Falas improvisadas de Paulo Guedes corroem sua credibilidade como interlocutor
Fiador do governo Jair Bolsonaro na área econômica, o ministro Paulo Guedes mina sua credibilidade com frequência quando vem a público expor o que pensa sobre os problemas brasileiros.
Não há dúvida de que o acelerado crescimento das despesas do governo com pessoal é uma questão que requer atenção, e a equipe do ministro há meses debate uma proposta de reforma administrativa para atacar o problema.
Na semana passada, no entanto, Guedes sabotou o próprio projeto ao chamar de parasitas os funcionários públicos, numa palestra em que defendeu mudanças nos salários e nas carreiras dos servidores.
Além de unir os sindicatos da categoria e outros opositores da reforma, o ataque grosseiro e indiscriminado ao funcionalismo contribuiu para desencorajar o governo e seus aliados no Congresso.
Na quarta (12), o ministro fez outra exibição de insensibilidade e destempero ao tratar com escárnio as empregadas domésticas enquanto discorria sobre o encarecimento do dólar e seu impacto na vida dos brasileiros.
Ao dizer que essas trabalhadoras de baixa renda se aproveitavam num passado recente do dólar barato para buscar diversão na Disneylândia —e tratar tal suposição como um desarranjo, “uma festa danada”—, Guedes revelou preconceito social grosseiro.
Num momento em que a frágil recuperação da atividade econômica e a necessidade de restaurar a saúde das finanças públicas impõem sacrifícios gerais, a verborragia do ministro decerto não contribui para seu papel de formulador e negociador das reformas.
Na Presidência, Bolsonaro adotou sem rodeios a ofensa e a desinformação como pilares de sua estratégia de comunicação. Guedes ainda não chegou a tanto, mas cumpre mal suas funções sempre que fala o que lhe vem à cabeça sem medir consequências.
Basta lembrar a espantosa entrevista que concedeu em novembro, quando evocou o fantasma do AI-5 ao criticar adversários que estimulavam manifestações contra Bolsonaro nas ruas. Ou quando defendeu uma “prensa” no Congresso pelas mudanças previdenciárias.
Num governo chefiado por um presidente incapaz de definir com clareza as prioridades de sua agenda, um ministro da Economia que se comunica de forma tão desastrada terá maior dificuldade em representar uma fonte de segurança para políticos e investidores.
Enquanto Bolsonaro precisa de apoio no Congresso para promover reformas ambiciosas e de altíssimo custo político em ano eleitoral, Guedes não raro se revela um porta-voz inconveniente, que empurra o governo para o isolamento e envenena o debate.
Carteira incerta – Editorial | Folha de S. Paulo
MP da identidade estudantil digital deve caducar por inabilidade do governo
Num mundo ideal, cada proposta legislativa seria avaliada exclusivamente por seus méritos ou deméritos. No Congresso como ele é, o conteúdo das matérias não chega a se mostrar desimportante, mas negociações políticas, ideologia, conveniências e disputas pessoais podem tornar-se fatores decisivos.
No mérito, a medida provisória que criou as carteiras de identidade estudantil digitais merece aprovação. Gratuitas, elas facilitam a vida dos alunos e ainda põem fim a uma espécie de cartório —o monopólio de entidades estudantis na emissão desses documentos.
A MP perderá validade no domingo (16). Como sua tramitação nem sequer foi iniciada, é praticamente certo que o texto caducará.
As quase 280 mil carteiras expedidas até o início desta semana continuarão válidas, porém o investimento que o MEC já fez na estrutura destinada à emissão dos documentos poderá perder-se.
Gastaram-se ainda R$ 2,5 milhões em publicidade oficial para divulgar a novidade, cujo futuro agora se afigura incerto. Lamentavelmente, voltará a vigorar uma situação legal que é pior do que a atual.
Não há, porém, como culpar apenas os parlamentares por esse retrocesso. O governo, em especial o ministro da Educação, Abraham Weintraub, tem considerável quinhão de responsabilidade.
O primeiro erro consistiu em criar a carteira por MP e não por projeto de lei. Medidas provisórias deveriam, como diz a Constituição, ser reservadas para casos de urgência, entre os quais não se encontra o das identidades estudantis.
O segundo foi ter lançado a iniciativa num contexto de ataque às entidades estudantis, com vistas a privá-las de uma fonte de rendimentos, em vez de apresentar a proposta como um benefício aos estudantes.
Criou-se uma polêmica ideológica que não interessa a grande parcela dos parlamentares.
A má vontade, ademais, tende a ser potencializada pelo estilo de gestão do binômio Bolsonaro-Weintraub.
Ao atacar a própria ideia de negociação política e ao antagonizar com todos aqueles que não se declaram partidários fieis, o governo não engendra um ambiente favorável para seus pleitos.
Não é coincidência que a administração Bolsonaro, notória pelas polêmicas gratuitas e grosserias costumeiras, detenha recordes em vetos presidenciais derrubados e MPs invalidadas.
Um governo dessa natureza acaba por ofuscar o trabalho da oposição.
Governo ainda não sabe quais as reformas que quer- Editorial | Valor Econômico
A confusão se sucede a tal velocidade que uma expectativa ruim ressurgiu - a de que não se aprovarão mais reformas estruturais importantes
O governo entrou muito mal no ano legislativo, com o Planalto em vertigem. Na quarta-feira, o ministro da Economia, Paulo Guedes, conseguiu quase enterrar a reforma administrativa ao chamar os servidores de “parasitas” e exaltar a alta do dólar como virtude do câmbio flutuante demonstrando preconceito em relação às empregas domésticas. Na quinta-feira, o Banco Central, com o dólar a R$ 4,380, interveio e vendeu US$ 1 bilhão em swaps cambiais. Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro resolveu trocar Ônix Lorenzoni, pelo general Walter Braga Neto, por mais estranho que possa parecer um militar em uma Casa Civil (o exemplo anterior foi o de Golbery Couto e Silva).
Bolsonaro retirou todos os poderes de Ônix antes de entregar a Casa Civil esvaziada a Braga Neto. Supõe-se agora que três militares no Planalto - Fernando Azevedo, da Defesa, Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo e Braga Neto - auxiliarão o presidente em um objetivo que desdenha: a articulação política. Mais realista é esperar que evitem a desarticulação total do governo, que é para onde as ações de Bolsonaro levam. Mesmo com o trio de generais estrelados, a esperança de ponte com o Congresso parece repousar no novo ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, que ocupou o lugar de Gustavo Canuto. Não há lógica forte no rearranjo ministerial, que mais parece uma das idiossincrasias do presidente.
A mudança ministerial é uma reação aos vários problemas que irromperam em relação aos projetos do governo, boa parte deles causados pelo próprio presidente da República. A PEC da reforma administrativa, elaborada pela equipe de Guedes, é mais do que necessária para evitar que o teto de gastos desabe em 2021. Está pronta desde setembro mas, pelo visto, o ministro não conseguiu convencer o presidente de sua urgência e, talvez, até mesmo de sua necessidade, dado o passado basicamente corporativista de Bolsonaro.
É um projeto importante para o país, para a modernização do Estado, para redução das desigualdades entre as condições de remuneração e trabalho dos servidores públicos em relação aos civis, mas é, claro, também um espinho político em um ano de eleições municipais, quando muitos deputados disputarão prefeituras. Surgiu então a ideia de que não se envie mais a PEC, e que seu conteúdo pegue carona em projetos que tramitam no Congresso. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ciente dos custos políticos da reforma, exigiu que a PEC, pela ambição e consequências, venha do Executivo. A reforma está empacada, um pouco mais ainda depois da metáfora dos “parasitas” de Guedes.
Se o suporte a uma das vigas do teto de gastos tem dificuldades para ser levantado, outra ameaça ao teto apareceu de repente, por emenda do líder do governo no Senado. Na PEC dos fundos, o senador Fernando Bezerra retirou do limite do teto despesas de R$ 32 bilhões correspondentes ao fluxo anual de recursos depositados nos fundos. Seria a primeira grande exceção à regra, com potencial para abrir brechas para destruição do teto, cujo papel é central no ajuste das contas públicas. Guedes avalia que é melhor retirar o texto do que aprová-lo com essa modificação.
O ministro da Economia parecia ter desistido de sua proposta de reforma tributária, a do IVA-Dual, e indicara que o governo enviaria sugestões para as duas propostas de reforma com o mesmo objetivo que estão no Congresso. Ontem, Guedes disse que o IVA-Dual vai ao parlamento em duas semanas, após reunião com governadores, que saíram sem entender bem se a proposta será enviada ou se constará como sugestão aos parlamentares. Ou seja, em uma reforma que naufragou diversas vezes em décadas, há hesitação e procrastinação, sinal de que provavelmente não será desta vez que as mudanças necessárias serão feitas.
Trombadas com o Congresso ocorreram ainda no orçamento, com o veto de Bolsonaro a emenda impositiva do relator do Orçamento, de R$ 30 bilhões, que amarraria ainda mais sua execução neste ano. Houve acordo para mudar o veto e retirar R$ 11 bilhões deste valor, sacramentado pela cúpula do Congresso, mas ele foi rejeitado por deputados.
A confusão se sucede a tal velocidade que uma expectativa ruim ressurgiu - a de que não se aprovarão mais reformas estruturais importantes. A perda de fôlego da economia no último trimestre do ano e no início de 2020, combinada com a perspectiva de adeus às reformas, pode consolidar um quadro negativo de pasmaceira econômica, eleitoralmente destrutivo para Bolsonaro.
Sonhos amazônicos – Editorial | O Estado de S. Paulo
Quase cinco anos após a publicação da encíclica Laudato si’ sobre a questão socioambiental, o papa Francisco consolidou a posição doutrinal da Igreja na Exortação Querida Amazônia, suscitada pelo Sínodo da Amazônia.
O destino da floresta amazônica tem ressonância universal. Como disse o diretor de comunicação do Vaticano, Andrea Tornielli, “as dinâmicas que ali se manifestam antecipam desafios já próximos a nós: os efeitos de uma economia globalizada e de um sistema financeiro cada vez mais insustentável na vida dos seres humanos e do meio ambiente; a convivência entre povos e culturas profundamente diversos; as migrações; a necessidade de proteger a criação, que corre o risco de ficar irremediavelmente ferida”.
Ante esses desafios o papa expôs seus quatro “sonhos” – o social, o cultural, o ecológico e o eclesial – numa progressão sinfônica que busca harmonizar motivos opostos, mas não antagônicos: a conservação ambiental e o progresso social; as tradições locais e os valores universais; a indignação com a agressão aos nativos e seu ecossistema e o fascínio com os reflexos da beleza do Criador em sua criação.
“Uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres”, já dissera Francisco na Laudato si’. A nada serve um conservacionismo “que se preocupa com o bioma, porém ignora os povos amazônicos”. Nas palavras do seu predecessor, Bento XVI, “ao lado da ecologia da natureza, existe uma ecologia que podemos designar ‘humana’, a qual, por sua vez, requer uma ‘ecologia social’.”
O papa denuncia a “falsa mística amazônica” tecnocrática e consumista que vê na floresta um enorme vazio a ser preenchido. “Às operações econômicas, nacionais ou internacionais, que danificam a Amazônia e desrespeitam o direito dos povos nativos ao território e sua demarcação, à autodeterminação e ao consentimento prévio, há que rotulá-las com o nome devido: injustiça e crime.” Mesmo os missionários cristãos, em que pese a sua abnegação na luta pela dignidade dos indígenas, nem sempre estiveram ao lado dos oprimidos, obrigando o pontífice a pedir perdão pelas ofensas da Igreja e pelos crimes cometidos em seu nome desde a chamada conquista da América.
Mas Francisco também deixa claro que o respeito à autonomia dos indígenas não pode significar um mero absenteísmo. “A identidade e o diálogo não são inimigos. A própria identidade cultural aprofunda-se e enriquece-se no diálogo com os que são diferentes, e o modo autêntico de a conservar não é um isolamento que empobrece.” Por isso o indigenismo que a Igreja propõe não é “completamente fechado, a-histórico, estático, que se negue a toda e qualquer forma de mestiçagem”. No mesmo diapasão, o trabalho missionário deve promover conquistas sociais, mas não pode se resumir a elas. A Igreja não pode ser “mais uma ONG”, mas deve promover uma inculturação “que nada despreza do bem que já existe nas culturas amazônicas, mas recebe-o e leva-o à plenitude à luz do Evangelho”.
Para tanto, os bispos são chamados a cultivar a espiritualidade missionária, o protagonismo dos leigos e novos espaços às mulheres. A respeito da proposta colateral, mas de alto impacto midiático da ordenação de homens casados, o pontífice não se pronunciou. Mesmo que tivesse essa disposição, seria temerário modificar uma disciplina milenar com base num sínodo regional de menos de 200 bispos e meia dúzia de cardeais sem sequer consultar os mais de 5.000 bispos e centenas de cardeais do resto do mundo.
Os sonhos do papa para uma “ecologia integral” acolhem os sonhos socioambientais seculares e os transcendem rumo a um matrimônio pleno entre o Céu e a Terra através do encontro com Jesus Cristo. O Brasil, principal guardião da floresta amazônica, com a maior população de católicos do mundo, tem um papel decisivo na transubstanciação desses sonhos em realidade.
Separação de Poderes – Editorial | O Estado de S. Paulo
O presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro João Otávio de Noronha, agiu bem ao acolher pedido da Advocacia-Geral da União (AGU) e cassar uma liminar concedida pela 18.ª Vara Federal do Ceará, posteriormente confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 5.ª Região (TRF-5), que suspendeu a nomeação de Sérgio Camargo para a presidência da Fundação Cultural Palmares, órgão vinculado à Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo.
Sérgio Camargo foi indicado para o cargo pelo ex-secretário de Cultura Roberto Alvim, mas em dezembro sua nomeação foi barrada pela Justiça Federal em função de declarações no mínimo desastrosas que ele fez contra a comunidade negra e seu legado cultural para o País, patrimônio que a Fundação Cultural Palmares tem como missão primordial defender e preservar.
Do extenso rol de disparates do léxico de Sérgio Camargo saíram declarações como: “A escravidão foi benéfica para os descendentes dos negros no Brasil”; “Racismo no Brasil é Nutella”; “Não tem salvação para o movimento negro, tem de ser extinto”; e “O dia da Consciência Negra celebra a escravização de mentes negras da esquerda”.
As declarações de Camargo provocaram devida indignação em diversas entidades ligadas ao movimento de defesa da cultura afro-brasileira, que o viam como alguém absolutamente inadequado para a presidência de um órgão historicamente comprometido com suas bandeiras. Este também foi o entendimento do juiz Emanuel José Matias Guerra, da 18.ª Vara Federal do Ceará, que viu desvio de finalidade na nomeação de Sérgio Camargo. Para o juiz de primeiro grau, as afirmações feitas por Camargo por meio das redes sociais “contrariam frontalmente os motivos determinantes para a criação daquela instituição (a Fundação Cultural Palmares) e a põem em sério risco”.
O desembargador federal Fernando Braga Damasceno concordou com o argumento do juiz Matias Guerra e não deu provimento a um recurso da AGU, mantendo a suspensão da posse de Sérgio Camargo. Foi preciso que o caso chegasse ao STJ para que, enfim, a Lei Maior prevalecesse.
Para o presidente da Corte, João Otávio de Noronha, houve clara e indevida intromissão do Poder Judiciário em seara do Poder Executivo. Ele está absolutamente certo. Em que pese o teor das declarações feitas por Camargo, não cabe ao Judiciário barrar um ato discricionário do Executivo se os requisitos legais para validação deste ato estão presentes, o que é o caso. Noutras palavras, à Justiça não é dado tecer juízo de valor sobre as escolhas feitas pelo governo federal quando as leis e a Constituição não são atacadas.
“O fato de o nomeado ter-se excedido em manifestações em redes sociais não autoriza juízo de valor acerca de seus valores éticos e morais ou mesmo de sua competência profissional, sobretudo quando se sabe das particularidades que permeiam as manifestações no citado meio virtual, território de fácil acesso e tido como aparentemente livre, o qual, por isso mesmo, acaba por estimular eventuais excessos dos que ali se confrontam”, diz trecho da decisão do presidente do STJ.
A pretexto de fiscalizar a validade de um ato administrativo, as instâncias inferiores da Justiça Federal interferiram indevidamente em outro Poder, este, sim, um flagrante desrespeito ao texto constitucional. Não são raros os casos em que juízes se arvoram em administradores públicos ou legisladores. A decisão do ministro Noronha há de ser recebida como uma saudável e exemplar exceção, ainda que excepcional não devesse ser.
Não se sabe se Sérgio Camargo será confirmado no cargo pela nova chefe da Secretaria Especial de Cultura, Regina Duarte, ela também ainda não confirmada na posição. De qualquer modo, trata-se de uma escolha do governo, que, a rigor, é quem deve responder pelos erros e acertos de seus escolhidos.
Dividir a carga do agronegócio – Editorial | O Estado de S. Paulo
O principal fator de segurança do comércio exterior do Brasil fraquejou em janeiro, quando as exportações do agronegócio, no valor de US$ 5,83 bilhões, ficaram 9,4% abaixo do valor faturado um ano antes. Pela primeira vez em muitos anos o superávit comercial do setor, de US$ 4,61 bilhões, foi insuficiente para cobrir o buraco deixado pelos demais setores. No ano passado, como em muitos outros, o saldo contabilizado pelo agro bastou para fechar aquele buraco e deixar um robusto excedente nas trocas de mercadorias. Em 2019, o superávit de US$ 46,67 bilhões anotado na balança comercial foi possibilitado pelo excedente de US$ 83,08 bilhões obtido pelo setor mais competitivo da economia brasileira. Os novos detalhes de exportações e importações do agronegócio foram publicados nesta semana pelo Ministério da Agricultura. Com o recuo das vendas, o saldo comercial do setor foi 11,18% menor que o de janeiro de 2019. Como o déficit dos demais setores foi maior que esse valor, a balança ficou no vermelho, com um resultado negativo de US$ 1,74 bilhão. A tentação de ver esse resultado como um acidente pode ser forte. Na linguagem da moda, pode ter sido mais um ponto fora da curva. A tentação poderá ser irresistível se o resultado voltar ao azul no fim do mês.
Na primeira semana de fevereiro houve superávit de US$ 1,16 bilhão. Com isso, o déficit acumulado no ano já caiu para US$ 575 milhões. Os números parecem promissores e podem reforçar a disposição de mudar de assunto. Mas será mais prudente, com certeza, pensar um pouco sobre os números de janeiro.
Queda de preços foi o fator mais importante para a redução do valor exportado pelo agronegócio. Mas houve também diminuição de volumes. O índice de preços foi 7,4% menor que em janeiro do ano passado. O de quantidade vendida ficou 2,2% abaixo do nível de um ano antes. No caso de alguns produtos, como a soja em grão, os dois fatores se combinaram. No de outros, preços e volumes em queda atuaram de forma separada. As vendas de alguns alimentos, no entanto, foram favorecidas pelo aumento do volume e dos preços.
As carnes proporcionaram receita de US$ 1,35 bilhão, recorde para os meses de janeiro. O preço médio foi 12,9% maior que o de janeiro de 2019. A quantidade foi 15,9% superior à de um ano antes. Embora os preços tenham cedido no mercado interno, facilitando o recuo da inflação e aliviando os consumidores, os negócios externos prosseguiram num cenário de forte demanda e cotações elevadas.
Nem o setor mais eficiente e competitivo, o agronegócio, é imune a fatores fora de seu controle e do alcance do governo brasileiro. Exemplos desses fatores são a disputa comercial entre Washington e Pequim, o protecionismo crescente, a desaceleração da economia e do comércio globais e os problemas decorrentes de epidemias. É cedo para avaliar o possível impacto comercial do surto do coronavírus, mas já se especula sobre efeitos negativos em 2020.
O saldo comercial brasileiro já dependeu por muito tempo da eficiência produtiva e do poder de competição do agronegócio. O setor continuará produzindo volumes crescentes, contribuindo para a segurança alimentar do mundo e proporcionando bons saldos para o comércio brasileiro. Mas é preciso cuidar da competitividade geral da economia.
Isso inclui ações mais eficientes e velozes nos programas de infraestrutura. Inclui também atenção ao comércio de serviços, detalhe negligenciado, e aos problemas da indústria (sobre serviços, ver editorial
Serviços também mostram fraqueza no fim de 2019 na página B02). Não se trata, como se pensa simploriamente, de retomar a criação de campeões nacionais nem de distribuir incentivos irresponsáveis. Trata-se de ir além de slogans ideológicos e de olhar para o mundo real das empresas. Ao contrário do que parece pensar o ministro da Economia, há muito mais nesse mundo que os problemas dos encargos trabalhistas.
Nada justifica atrasar a reforma administrativa – Editorial | O Globo
Bolsonaro não pode recuar no envio ao Congresso da proposta para modernizar o serviço público
O presidente Bolsonaro já usou as manifestações violentas no Chile como pretexto para adiar o envio do projeto da reforma administrativa ao Congresso. Temia que o mesmo ocorresse aqui, numa suposição forçada. Antes disso, depois da aprovação das mudanças históricas na Previdência no ano passado, o Planalto deixou de aproveitar o momento político favorável e reteve o projeto.
Sempre é possível encontrar algum motivo para não continuar as reformas. Por exemplo, mais um comentário inadequado do ministro da Economia, Paulo Guedes, que não consegue se conter nos improvisos, embora bem articulados. Desta vez, ao falar sobre o câmbio — que se encontra num ciclo de desvalorização, muito devido à saudável queda interna dos juros —, lembrou o período em que o dólar estava em R$ 1,80, e até “empregada doméstica ia à Disney.” O conceito econômico é correto, mas a frase, um desastre.
Natural que a oposição use na luta política mais este escorregão verbal de Guedes. Mas isso não pode levar o governo a continuar a retardar o início da discussão no Congresso das também imprescindíveis medidas que modernizarão a política de recursos humanos do Estado. Elas se destinam a um contingente de mais de 600 mil servidores federais, sem considerar os aposentados. Boa parte está desmotivada, despreocupada com a qualidade de seu trabalho. Portanto, sem atender bem à população e contribuir para o bom funcionamento da burocracia pública.
Ao deixar ontem o Alvorada, o presidente Bolsonaro voltou atrás mais uma vez: disse que deverá enfim despachar a reforma para o Legislativo. A ver. Não haverá apenas alterações constitucionais, como a da Previdência. Há questões que podem ser tratadas por projetos de lei, mais fáceis de serem aprovados, por não exigirem quórum especial na votação. Mas sem a vontade política do presidente, nada feito.
O tempo passa, e a imagem de Bolsonaro se consolida como mais um político representante de corporações de servidores — no caso, militares e policiais —, entre tantos que no Congresso atravancam os projetos de atualização do velho arcabouço de leis e normas imprescindíveis para a modernização do país.
Um dos aspectos desta reforma é o combate a privilégios. Como na Previdência, que terminou aprovada no Congresso, mesmo com a exigência de no mínimo 60% dos votos. E com apoio da opinião pública, o que se imaginava impossível.
O mesmo acontecerá com as mudanças administrativas, se o governo, como nas alterações previdenciárias, enfrentar as corporações. Mesmo com os dilemas ideológicos e corporativos do presidente. Deverá ser até mais fácil, porque já existe grande aprovação popular às mudanças. Pesquisa Datafolha divulgada há pouco detectou 91% de apoio à reforma administrativa como um todo, e 88% especificamente à demissão do mau funcionário. Não há mais tempo a perder.
Bolsonaro e Fernández precisam mudar e fazer o Mercosul avançar – Editorial | O Globo
Líderes têm a chance de construir um futuro comum dos dois países, à margem das diferenças pessoais
Mudou tudo, segundo o chanceler argentino Felipe Solá. Depois de se reunir com o presidente Jair Bolsonaro, na quarta-feira, deixou Brasília otimista e confiante num relançamento das relações bilaterais, como disse em entrevista ao GLOBO: “Estava instalada uma relação muito ruim, péssima, diria, entre os governos do Brasil e da Argentina. Isso terminou hoje. E acho que é importante que o governo dos Estados Unidos saiba que isso aconteceu, que a relação melhorou.”
Hoje, o único aspecto visível de convergência entre os governos da Argentina e do Brasil é, provavelmente, a admissão explícita da dependência dos presidentes dos dois países às decisões da administração Donald Trump. No caso do argentino Alberto Fernández, trata-se de uma questão de sobrevivência — ele precisa, desesperadamente, do aval de Washington ao FMI para uma moratória negociada da dívida externa. No caso de Bolsonaro, é opção pessoal, incorporada à política externa como ideia de “aliança estratégica” econômica e militar, até agora sem contornos definidos.
O problema de ambos os presidentes é a realidade. A interdependência dessas duas nações transcende conjunturas ou caprichos políticos dos governantes, como se constata nos 29 anos de existência do Mercosul ou no acordo regional de livre comércio com a União Europeia, a ser referendado em 2021.
Faz algum sentido o otimismo do chanceler Solá, político com 33 anos de militância na ala centro-direita do peronismo, de onde emergiu o ex-presidente Carlos Menem (1989-1999). As circunstâncias obrigam Bolsonaro e Fernández a buscar uma base de entendimento. Talvez, em 1º de março, em Montevidéu, na posse de Luis Lacalle Pou na presidência uruguaia.
Bolsonaro e Fernández precisam resolver, rapidamente, pendências como as mudanças nas regras comerciais do Mercosul. Brasil, Paraguai e Uruguai desejam reduzir a Tarifa Externa Comum, e a Argentina resiste. Fernández reluta aceitar um corte à metade (a média atual é de 13%) como propõe Brasília. Há espaço para negociação, se os líderes demonstrarem um mínimo de sabedoria política para compreender que ambas as sociedades estão ansiosas pela expansão da renda interna, via aumento de competitividade das respectivas economias.
Bolsonaro e Fernández têm a chance de construir um futuro comum dos dois países, à margem das diferenças pessoais. Sem entender isso, se arriscam ao abismo que a História costuma reservar aos anódinos na política — o da irrelevância.
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